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A Mulher que Escreveu Bíblia Moacyr Scliar Em ... - Sua Alteza o Gato

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Tratava-se da soberana de um lendário país cuja localização ninguém sabia<br />

ao certo: ficava na Arábia, segundo uns, na África, segundo outros. Era<br />

famosa, essa mulher, pela beleza e pela audácia e pela ri<strong>que</strong>za. De há<br />

muito desejava conhecer Salomão, cuja fama de sábio chegara até ela. Seu<br />

tour tinha esse objetivo exclusivo: vinha ver o rei, uma visita <strong>que</strong><br />

provavelmente se prolongaria bastante. Não era de admirar <strong>que</strong> as mulheres<br />

do harém se mostrassem francamente descontentes com a notícia. Já era<br />

feroz a disputa pelo leito de Salomão; a chegada de uma rainha<br />

estrangeira só complicaria as coisas. Aparentemente, vinha em busca de<br />

sábios conselhos, a exemplo de outros governantes; mas será <strong>que</strong> esse<br />

propósito declarado não mascarava ocultas intenções, uma aliança<br />

político-sexual? Fosse como fosse, o rei teria de dar atenção à hóspede<br />

e isso, no mínimo, faria com <strong>que</strong> se ocupasse ainda menos das mulheres do<br />

harém, acirrando entre elas uma concorrência <strong>que</strong> chegava aos limites do<br />

intolerável.<br />

Quanto a mim, não partilhava dessas preocupações. De luto pela morte de<br />

Mikol, recusava-me a tomar conhecimento das fofocas palacianas. Além<br />

disso, e sempre pressionada pelos anciãos, tinha de me dedicar ao texto.<br />

Na<strong>que</strong>le momento estávamos trabalhando com um personagem atormentado,<br />

difícil: Saul, o primeiro rei de Israel. Ali estava ele, às voltas com o<br />

clássico binômio poder e guerra - guerra cruel, <strong>que</strong>, no caso dos<br />

amalecitas, por exemplo, resultara no massacre de homens, mulheres e<br />

crianças. Crueldades não tinham sido raras até então - os pergaminhos<br />

<strong>que</strong> se empilhavam sobre minha mesa estavam cheios delas; o novo, em nossa<br />

história, era um governante <strong>que</strong> sofria de depressão. Alegrava-me <strong>que</strong><br />

fosse deprimido, <strong>que</strong> fizesse parte do torturado grupo das feias, das<br />

cancerosas, dos aleijados. A meus olhos, isso o tornava mais humano. Era<br />

algo <strong>que</strong> eu agora almejava: tornar-me mais gente, transformar o<br />

ressentimento <strong>que</strong> nascera de minha fealdade e a dor decorrente da perda<br />

de Mikol em tranqüila resignação, em sabedoria. Sabedoria - mas não como<br />

a de Salomão, <strong>que</strong> me parecia mais esperteza do <strong>que</strong> qual<strong>que</strong>r outra coisa.<br />

O <strong>que</strong> eu buscava era a genuína, autêntica sabedoria <strong>que</strong> só pode nascer<br />

do sofrimento compreendido, elaborado. Comovia-me ainda o fato de <strong>que</strong><br />

Saul buscasse consolo na música. Também eu, nos momentos de maior<br />

tristeza, entoava as canções <strong>que</strong> em criança ouvira de minha mãe e das<br />

mulheres da aldeia. Saul, achava eu quando comecei a escrever sobre ele,<br />

estava a caminho da santidade.<br />

Mas à santidade não chegaria. E não chegaria lá por causa de seu trágico,<br />

doentio relacionamento com Davi. Esses homens, eu pensava, poderiam ter<br />

aprendido algo com Ruth e Naomi. Mas talvez amizade fosse coisa simples<br />

demais para gente tão complicada. Saul amava e odiava Davi a um tempo;<br />

tentou matá-lo, mas deu-lhe a filha em casamento. Que tivesse consultado<br />

a bruxa de Endor para, com sua ajuda, ouvir a voz do falecido mentor<br />

Samuel, era para mim a prova de seu desamparo emocional. A esse homem eu<br />

poderia, mais <strong>que</strong> ao auto-suficiente Salomão, consolar e encantar com<br />

minhas histórias. Infelizmente, eu tinha chegado dois reis atrasada.<br />

Com Davi, sucessor de Saul, estávamos, finalmente, em passado recente,<br />

um passado do qual os anciãos podiam até dar testemunho pessoal. Já não<br />

precisavam consultar pergaminhos; simplesmente deixavam fluir as suas<br />

próprias e reverentes lembranças. Tais lembranças falavam de um homem<br />

excepcionalmente bonito, músico, poeta, guerreiro, amante de mulheres.<br />

Falavam de sua memorável luta contra o gigante Golias, na batalha contra

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