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A Mulher que Escreveu Bíblia Moacyr Scliar Em ... - Sua Alteza o Gato

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sumário - um julgamento no qual ele foi o promotor e o juiz (advogado de<br />

defesa não havia; ninguém se atreveria a assumir esse papel). O infeliz<br />

pastorzinho foi considerado culpado e condenado. Receberia o tradicional<br />

castigo adotado pelas tribos do deserto: o apedrejamento. Providenciou-se<br />

imediatamente uma enorme quantidade de pedras da montanha. Amarrado a<br />

uma estaca, o rapaz era o fácil alvo dos calhaus <strong>que</strong> os homens da aldeia<br />

arremessavam com fúria. Eu olhava sem poder fazer nada, amparando minha<br />

pobre irmã <strong>que</strong>, aterrorizada, não sabia o <strong>que</strong> fazer. Por fim as pedras<br />

terminaram; quase morto, sangrando abundantemente, o rapaz foi<br />

desamarrado e expulso. Vai-te, proclamou meu pai, nunca mais <strong>que</strong>ro te<br />

ver por aqui; se apareceres de novo serás apedrejado até morrer.<br />

Cambaleando, ele se foi.<br />

Minha irmã consolou-se rápido, mesmo por<strong>que</strong> já estava de olho em outro<br />

pastor. Esperto, meu pai prometera a esse rapaz vinte cabras, com a<br />

condição de <strong>que</strong> assumisse a paternidade do bebê <strong>que</strong> estava por nascer.<br />

Os habitantes da aldeia também não lamentavam o castigo do transgressor,<br />

<strong>que</strong>, segundo eles, fizera por merecer. De modo <strong>que</strong> em breve ninguém<br />

falava mais nele, nem mesmo os seus pais.<br />

A única <strong>que</strong> estava sofrendo - e sofrendo em silêncio - era eu. Com o<br />

pastorzinho, ia-se a minha esperança, absurda esperança <strong>que</strong> fosse, de<br />

amar e ser amada. Fi<strong>que</strong>i só, com minha pedra.<br />

Mas era só o <strong>que</strong> eu fazia, masturbar-me?<br />

Não. Não era só o <strong>que</strong> eu fazia. Ou melhor: era, sim, só o <strong>que</strong> eu fazia,<br />

até <strong>que</strong> o escriba se apiedou de mim.<br />

O escriba era o único homem <strong>que</strong> meu pai respeitava. Por uma simples<br />

razão: só ele, entre nós, sabia ler e escrever. Não era, portanto, um<br />

empregado comum. Ganhava mais, tinha certos direitos; por exemplo,<br />

recebia mensalmente dez <strong>que</strong>ijos de cabra, a<strong>que</strong>la tão valorizada iguaria.<br />

Mas suas atribuições também eram especiais. Ao escriba, meu pai entregava<br />

as missivas <strong>que</strong> vinham do rei. Eram raras, tais missivas, mas sempre<br />

urgentes continham exigências taxativas. Cabia ao escriba respondê-las,<br />

uma tarefa <strong>que</strong> exigia dele não apenas o domínio da palavra escrita, mas<br />

considerável habilidade política: as relações do meu pai com a Coroa não<br />

eram das melhores. Competia também ao escriba manter uma espécie de<br />

contabilidade dos rebanhos e de outros bens de meu pai, e ainda dos<br />

tributos <strong>que</strong> o patriarca arrecadava. Na aldeia, o escriba era olhado com<br />

respeito e temor: consideravam-no uma espécie de mago.<br />

Agora: era feio, o velho. Deus, como era feio. Diferença de idade à<br />

parte, em feiúra nós nos equivalíamos. Daí talvez a ternura <strong>que</strong> por mim<br />

mostrava. Estava sempre me presenteando; um páo, um pedaço de <strong>que</strong>ijo de<br />

cabra. E, sempre <strong>que</strong> podia, contava-me histórias: sabia tudo sobre o<br />

passado de nossa tribo.<br />

Um dia, ele me chamou à tenda <strong>que</strong> lhe servia de escritório. Vem cá,<br />

disse, com ar misterioso, <strong>que</strong>ro falar contigo.<br />

Confesso <strong>que</strong>, no primeiro momento, pensei em sacanagem. Com um certo<br />

medo, mas também com certa excitação - teria chegado o momento em <strong>que</strong> a<br />

pedra seria substituída por um caralho, verdadeiro ainda <strong>que</strong> idoso? -,<br />

entrei na tenda, onde havia apenas uma mesinha e um banco rústico. Ali

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