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A Mulher que Escreveu Bíblia Moacyr Scliar Em ... - Sua Alteza o Gato

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mim? Para <strong>que</strong> me ajudassem a chegar ao leito de Salomão? Sim, mas não<br />

apenas isso. De repente, eu <strong>que</strong>ria mais. Queria solidariedade, a<br />

verdadeira solidariedade das oprimidas. E contava chegar a isso<br />

partilhando com elas, da forma mais sincera e aberta possível, minha<br />

angústia. Queria mostrar-lhes <strong>que</strong> minha virgindade era um pouco a<br />

virgindade delas (mostrando <strong>que</strong> mesmo as descabaçadas continuavam,<br />

psicologicamente, socialmente, virgens), <strong>que</strong> minha marginalização<br />

tornava-as também marginais, <strong>que</strong> minha feiúra era também a feiúra delas<br />

- se não uma feiúra externa, pelo menos interna, feiúra da tristeza, do<br />

desamparo, por aí. Não tínhamos por <strong>que</strong> competir; ao contrário, só a<br />

união nos faria fortes, daria sentido à nossa vida ali no harém.<br />

E como chegar lá? Para tanto, eu tinha planos. Organizaríamos grupos de<br />

discussão sobre a situação das mulheres no harém, cada grupo com sua<br />

coordenadora e sua relatora; faríamos uma grande plenária; e, baseada<br />

nas resoluções da plenária, eu - a única letrada - escreveria a Carta do<br />

Harém, um inflamado documento de protesto contra as condições em <strong>que</strong><br />

vivíamos e <strong>que</strong> talvez percorresse clandestinamente o mundo, despertando<br />

em todos os haréns a consciência das mulheres lá aprisionadas. De pé,<br />

vítimas do sexo!, seria o grito de revolta <strong>que</strong> ecoaria, de Norte a Sul,<br />

de Leste a Oeste, <strong>que</strong> repercutiria nos ouvidos de todos os governantes.<br />

O objetivo final do movimento seria, não acabar com a instituição harém<br />

- muitas mulheres nem saberiam viver em liberdade -, mas pelo menos<br />

estabelecer uma pauta de direitos. No topo dessa pauta eu colocaria a<br />

quota mínima de fodas, a ser determinada cientificamente: depois de<br />

estudada a performance sexual de reis e sultões, uma média seria<br />

calculada e serviria de parametro. Outro detalhe: dentro do conceito de<br />

vida sexual democrática, cada mulher teria direito ao mesmo número de<br />

noites no leito real. Argumentos tipo meu pai é um monarca muito<br />

poderoso, eu mereço mais, não pesariam. Sou mais bonita, tenho mais tesão<br />

- nada disso seria aceito. Agora: haveria margem para alguma negociação.<br />

Se uma mulher quisesse passar um ano sem trepar, poderia. Se uma mulher<br />

preferisse outra mulher em lugar do rei - tudo bem. Essas ficariam com<br />

créditos sexuais, para serem utilizados em outra época ou para serem<br />

trocados por outras espécies de gratificação. Dez fodas não utilizadas<br />

dariam direito a uma viagem de turismo pelo Mediterrâneo, em navio<br />

confortável, com tudo pago. Se o rei estava poupando sua energia sexual,<br />

nada mais justo <strong>que</strong> compensasse a<strong>que</strong>las <strong>que</strong> o beneficiavam.<br />

Enfim: um belo projeto, algo capaz de estabelecer um novo paradigma na<br />

relação entre homens e mulheres, ao menos em termos de harém. Agora:<br />

estava eu sendo sincera ao formulá-lo ou <strong>que</strong>ria convencer-me de <strong>que</strong> era<br />

uma pessoa generosa, com ampla visão da sociedade e do mundo, uma pessoa<br />

capaz de desfraldar ao vento a bandeira da eqüidade e da justiça? Eu não<br />

tinha resposta para essa pergunta. Talvez o movimento fosse apenas<br />

disfarce para o meu egoísmo. E daí? Eu era interesseira? Está bom, então<br />

eu era interesseira. O mundo é dos <strong>que</strong> competem, eu me dizia, <strong>que</strong>m menos<br />

corre voa, e eu não vou ficar aqui esperando <strong>que</strong> a<strong>que</strong>le rei se disponha<br />

a me dar o favor de sua atenção. Por idealismo ou por qual<strong>que</strong>r outra<br />

razão, eu tinha de partir para a briga - esperando, naturalmente, o<br />

momento psicológico adequado.<br />

Chegou mais cedo do <strong>que</strong> eu esperava. Duas semanas se passaram sem <strong>que</strong> o<br />

rei chamasse alguma mulher, o <strong>que</strong> era raro. A inquietude apossou-se do<br />

harém. Antes <strong>que</strong> os boatos começassem a circular, disseminei - com a<br />

ajuda das escravas (até a de língua cortada entrou na dança; era muito

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