14.04.2013 Views

A Mulher que Escreveu Bíblia Moacyr Scliar Em ... - Sua Alteza o Gato

A Mulher que Escreveu Bíblia Moacyr Scliar Em ... - Sua Alteza o Gato

A Mulher que Escreveu Bíblia Moacyr Scliar Em ... - Sua Alteza o Gato

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

de harmonia; c) estrabismo (ainda <strong>que</strong> moderado); d) excesso de sinais.<br />

Falta dizer <strong>que</strong> o conjunto era emoldurado (emoldurado! Essa é boa,<br />

emoldurado! <strong>Em</strong>oldurado, como um lindo quadro é emoldurado! <strong>Em</strong>oldurado!)<br />

por uns secos e opacos cabelos, capazes de humilhar qual<strong>que</strong>r<br />

cabeleireiro.<br />

O <strong>que</strong> o espelho me mostrava era algo semelhante a uma paisagem estranha,<br />

atormentada, na qual os acidentes (acidentes: muito apropriado, o termo)<br />

geográficos não guardavam a menor relação entre si. Uma catástrofe tinha<br />

ocorrido em minha face, um cataclisma <strong>que</strong> seguramente antecedera de<br />

muito o meu nascimento; o <strong>que</strong> eu estava vendo era a feiúra arcaica, a<br />

feiúra ancestral, uma feiúra consolidada pelos anos, pelos milênios,<br />

talvez.<br />

Rosto oculto entre as mãos, minha irmã soluçava baixinho. Não me dava<br />

pena vê-la assim. Ao contrário, o <strong>que</strong> sentia era raiva - imensa,<br />

incontida raiva, dela, da outra irmã, de meus pais. Por <strong>que</strong> não me haviam<br />

dito antes <strong>que</strong> eu era tão feia? Por <strong>que</strong> me haviam enganado?<br />

Por piedade, era a resposta mais óbvia. Tinham tentado poupar-me à<br />

acabrunhante realidade mediante uma laboriosa conspiração. Ao longo dos<br />

anos, haviam sido personagens de uma comédia, exitosamente encenada para<br />

platéia reduzida: eu. "Aí vem ela, vamos fingir <strong>que</strong> nada notamos em sua<br />

face, vamos fingir <strong>que</strong> ela é normal, um pouco bela, até - não vamos nos<br />

mostrar deslumbrados diante de sua beleza por<strong>que</strong> periga não colar, quando<br />

a esmola é demais o santo desconfia, mas se nos portarmos de maneira<br />

natural, cairá direitinho." Espectadora única, eu fora facilmente<br />

enganada. Verdade <strong>que</strong> a atuação deles, agora eu era forçada a reconhecer,<br />

fora soberba. Ninguém falava de meus traços; ninguém diria, por exemplo,<br />

como és bela - mas também ninguém diria, és medonha. Guardariam silêncio,<br />

ou então recorreriam a sinuosas expressões de elogio: como tu estás<br />

bonita com essa túnica. A afirmativa "tu estás bonita" sempre se<br />

acompanharia de uma relativizadora complementação ("com essa túnica"), o<br />

<strong>que</strong> atenuaria a mentira, tornando-a suportável aos olhos de Jeová e ao<br />

mesmo tempo alimentando a piedosa ilusão.<br />

Com um pouco de atenção eu teria percebido o embuste. Mas, será <strong>que</strong> eu<br />

<strong>que</strong>ria perceber o embuste? Ou estaria, eu própria, participando dele,<br />

enganando-me - em parte para não frustrar a trupe fam¡liar, em parte<br />

para não descobrir a aterradora verdade?<br />

Essa dúvida já não tinha sentido. A farsa não mais se sustentava.<br />

Confrontada com a realidade, eu dela não conseguiria escapar. Ah, se<br />

pudesse voltar atrás... Por <strong>que</strong> me olhei na<strong>que</strong>le espelho, eu me<br />

perguntava, golpeando o peito com incontida fúria, por <strong>que</strong> cedi à maldita<br />

curiosidade, à maldita vaidade? Por <strong>que</strong> não me arrancou Jeová da mão<br />

a<strong>que</strong>le revelador, mas funesto objeto? Hein, Jeová? Por <strong>que</strong> não tomaste<br />

alguma providência, tu <strong>que</strong> sabes tudo, tu <strong>que</strong> podes tudo? Podias ter<br />

reduzido o espelho a pó, com o simples ato de tua vontade. Por <strong>que</strong> não o<br />

fizeste? Será <strong>que</strong> não existes, amigo? Hein? Será <strong>que</strong> não passas de uma<br />

abstração, uma ilusão da ótica emocional?<br />

Clamor inútil, inúteis recriminações. Nada mais podia ser feito. Eu tinha<br />

me olhado ao espelho e pronto: o <strong>que</strong> tinha visto, não es<strong>que</strong>ceria. Mas eu<br />

precisava, senão de consolo, ao menos de explicação. Tinha de saber a<br />

razão pela qual coubera a mim tamanho quinhão de feiúra. A Natureza não

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!