A Mulher que Escreveu Bíblia Moacyr Scliar Em ... - Sua Alteza o Gato
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Perguntaram-me o <strong>que</strong> achava. O tratamento <strong>que</strong> me davam, devo dizer, era<br />
extremamente respeitoso - afinal, eu era uma esposa do rei. Eu disse <strong>que</strong><br />
estava satisfeita, <strong>que</strong> minhas expectativas tinham, de fato, sido<br />
ultrapassadas.<br />
- Muito bem - disse a encarregada do harém. - Se está tudo a teu gosto,<br />
peço-te <strong>que</strong> me acompanhes à sala do trono.<br />
Chegara o momento, o grande momento. À medida <strong>que</strong>, seguindo a mulher<br />
pelos longos corredores, eu me aproximava da sala do trono, todo o<br />
resto, toda a minha vida até então, ia ficando para trás. Meu pai, minha<br />
mãe, a família, o pastorzinho, a pedra (pobre pedra), tudo agora era<br />
simples lembrança. Uma nova existência estava começando.<br />
Finalmente, chegamos. As maciças portas, guardadas por soldados armados,<br />
estavam fechadas.<br />
- Temos de esperar um pouco - disse a mulher.<br />
Ao cabo de algum tempo, para mim insuportavelmente longo, as portas se<br />
abriram e um homem de barbas brancas trajando luxuosas vestes, apareceu.<br />
Era um dos cortesãos.<br />
- É ela? - perguntou, seco.<br />
- É ela - respondeu a encarregada do harém. - Chegou há pouco.<br />
Como parecia ser hábito na<strong>que</strong>le lugar, ele mirou-me com atenção.<br />
Obviamente tentava imaginar o rosto oculto atrás do véu. Mas logo<br />
desistiu:<br />
- Bem. Entrem logo.<br />
Entramos. O rei estava sentado no trono, usando a coroa e o manto real.<br />
Ao vê-lo, uma vertigem se apossou de mim. Cheguei a cambalear; a<br />
encarregada do harém teve de me amparar para <strong>que</strong> eu não caísse.<br />
Que homem lindo, Deus do céu. Eu nunca tinha visto homem tão lindo. Um<br />
rosto longo, emoldurado por uma barba negra (com alguns fios prateados),<br />
olhos escuros, profundos, boca de lábios cheios, nariz um pouquinho<br />
adunco - o suficiente apenas para dar-lhe um charme especial. E o porte<br />
senhoril, e o ar másculo... Lindo, lindo.<br />
De imediato me apaixonei por ele. Uma paixão avassaladora, definitiva, a<br />
paixão <strong>que</strong>, eu tinha certeza, daí em diante governaria minha vida.<br />
Bendito o momento em <strong>que</strong> ele resolvera me chamar. Bendita a carta <strong>que</strong> me<br />
mandara. Bendita a boca <strong>que</strong> ditara as palavras da<strong>que</strong>la carta, bendito<br />
a<strong>que</strong>le homem, a<strong>que</strong>le lindo homem. Eu podia passar anos olhando-o, em<br />
muda adoração. Finalmente descobria o amor. O pastorzinho? Não, aquilo<br />
fora apenas um teste, um treino. Com ele, meu coração se preparara para<br />
o grande salto da paixão. Que estava agora tão próxima.<br />
Salomão nem se dera conta de <strong>que</strong> eu estava ali, entregue ao <strong>que</strong>, depois<br />
descobri, era uma de suas atividades prediletas, a saber, julgar: decidir<br />
o <strong>que</strong> era certo e errado, o bom e o mau, decidir <strong>que</strong>m tinha e <strong>que</strong>m não