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A Mulher que Escreveu Bíblia Moacyr Scliar Em ... - Sua Alteza o Gato

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profetas gritando, o fim está próximo, o fim está próximo? Não. O estilo<br />

dele não era de fazer discursos. O estilo dele era outro. A ação <strong>que</strong><br />

planejava não era a<strong>que</strong>la. E qual era, então?<br />

De repente me ocorreu: um atentado. Claro. Como não tinha pensado naquilo<br />

antes? Um atentado. Cuidadosamente planejado, pelo visto. O encontro com<br />

a caravana da rainha, <strong>que</strong> certamente não fora casual, proporcionara-lhe<br />

a oportunidade de entrar no palácio sob o disfarce de guia. E agora ele<br />

estava ali, armado e pronto para a ação.<br />

Mas - atentado contra <strong>que</strong>m? Contra uma das mulheres de <strong>que</strong>m falara com<br />

tanta raiva, uma moabita, uma amonita, uma edomita, uma hitita? De <strong>que</strong><br />

adiantaria matar uma mulher só, se eram tantas no harém? Ou <strong>que</strong>m sabe<br />

era alguém da corte - por exemplo, o chefe da segurança, a<strong>que</strong>le <strong>que</strong> lhe<br />

cortara o braço? Também não: com esse, já poderia ter ajustado as contas.<br />

Além disso, não parecia ter muita raiva dos soldados <strong>que</strong> o haviam atacado<br />

e <strong>que</strong>, afinal, haviam cumprido ordens.<br />

Não, o alvo dele era outro.<br />

Salomão. Era o rei <strong>que</strong> ele <strong>que</strong>ria. Quando me dei conta disso, senti um<br />

calafrio. Salomão? O rei? Contudo, fazia sentido. Na lógica do rapaz<br />

fazia sentido. Afinal, o rei era o supremo pecador - e o supremo traidor:<br />

o homem <strong>que</strong> usara a sabedoria concedida por Deus para engrandecer-se a<br />

si próprio, para viver na ri<strong>que</strong>za, no esplendor, na luxúria. Que tivesse<br />

construído o Templo certamente não importava. O Templo era o território<br />

do alto clero, unido por interesses ao próprio rei. Não, o Templo não<br />

neutralizava a transgressão da lei divina. Salomão, decidira o tal Mestre<br />

da Justiça, precisava ser punido. E o antigo pastorzinho era o<br />

instrumento dessa punição.<br />

Uma coisa, contudo, me intrigava: por <strong>que</strong> contara-me ele tudo aquilo?<br />

Por <strong>que</strong> me fizera de confidente? Só havia uma explicação: considerava-me<br />

aliada. Por<strong>que</strong>, no seu modo de ver, eu era, como ele próprio, uma vítima:<br />

vítima de meu pai, vítima de Salomão. Fechada na<strong>que</strong>le quarto, escrevendo<br />

um livro - era uma escrava do rei, ansiando por liberdade.<br />

E eu era uma escrava? Foi a pergunta <strong>que</strong> me fiz na<strong>que</strong>le momento.<br />

Transcendente pergunta; dependendo da resposta <strong>que</strong> eu própria me desse<br />

teria de agir de diferentes maneiras. Eu era uma escrava? Estava eu<br />

submetida à vontade de Salomão?<br />

Não. Eu não era uma escrava. Nem ansiava por liberdade. Se era em<br />

cativeiro <strong>que</strong> eu vivia, a este cativeiro eu me acostumara; mais <strong>que</strong><br />

isso, fizera do projeto de Salomão o meu projeto. A vida fora ruim, para<br />

mim? Talvez. Por não poucas humilhações passara, desde <strong>que</strong> chegara no<br />

palácio. E se quisesse acusar Salomão por tais humilhações poderia<br />

fazê-lo.<br />

Mas não o faria. Por<strong>que</strong> havia o texto, a história <strong>que</strong> eu estava<br />

escrevendo. E o texto me consolava, me amparava, dava sentido à minha<br />

existência. Através do texto eu podia me comunicar com Salomão. E não<br />

era uma mensagem de ódio <strong>que</strong> lhe transmitiria. Eu sabia <strong>que</strong> no fundo ele<br />

era um ser humano, uma pessoa como outra qual<strong>que</strong>r. Não era melhor do <strong>que</strong><br />

ninguém - nem pior. E por isso não merecia o castigo <strong>que</strong> lhe estava sendo<br />

preparado. Que não resolveria nada - e <strong>que</strong> talvez nem se consumasse. Eu

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