A Mulher que Escreveu Bíblia Moacyr Scliar Em ... - Sua Alteza o Gato
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Abraçou-me com efusão; depois, mirou-me da cabeça aos pés, sim senhora,<br />
o pessoal aqui te trata bem, estás muito elegante. Não disse <strong>que</strong> eu<br />
estava bonita, obviamente, mas tanto não se lhe podia exigir. Salomão<br />
observava a cena com um sorriso divertido; depois, dizendo <strong>que</strong> tinha<br />
muito a fazer, pediu licença, precisava se retirar.<br />
- Cara legal, esse rei - comentou meu pai. Olhou ao redor, satisfeito<br />
com o <strong>que</strong> estava vendo. - Estás bem instalada, aqui. Este teu quarto é<br />
maior do <strong>que</strong> a nossa casa inteira.<br />
Perguntou como era a minha vida no palácio, o <strong>que</strong> eu fazia o dia inteiro.<br />
Eu respondia com evasivas. De repente, notou as prateleiras cheias de<br />
pergaminhos. Fechou a cara:<br />
- Mas tu continuas com a<strong>que</strong>la mania de escrever? Pensei <strong>que</strong> já tinhas<br />
acabado com essa porra!<br />
Aí eu cansei de encenação. Estou, sim, escrevendo, disse, é só o <strong>que</strong> eu<br />
faço o dia inteiro.<br />
- É um trabalho para o rei - acrescentei, seca.<br />
- Trabalho? - Ele, claramente ofendido: trabalho era coisa para escravo,<br />
não para uma esposa real. - Mas <strong>que</strong> história é essa? Filha minha<br />
trabalhando para o rei, fazendo papel de empregada? Não foi para isso<br />
<strong>que</strong> eu te dei ao Salomão. Dei-te a ele para <strong>que</strong> tivesses um lugar de<br />
honra no harém. <strong>Em</strong> vez disso estás aí, escrevendo! Sacanagem, pô!<br />
Calou-se, furioso. Mas logo em seguida voltou à carga, dessa vez em<br />
busca do bode expiatório. A cabra expiatória.<br />
- A culpa é tua. Quem mandou aprender a ler e a escrever? Eu sabia <strong>que</strong><br />
essa história não ia dar certo. Falei pra tua mãe: negócio de mulher não<br />
é esse, negócio de mulher é outro, é na cama. Nem eu, <strong>que</strong> sou chefe, sei<br />
ler e escrever. Por <strong>que</strong> precisavas te meter a besta? Já não bastava tua<br />
feiúra, tinhas de bancar a inteligente? Está aí o resultado: as outras<br />
setecentas mulheres estão lá no harém, passando bem, comendo do bom e do<br />
melhor, banhando-se, perfumando-se, e tu aí, gastando a bunda numa<br />
cadeira, trabalhando nessas merdas de pergaminhos. Já te deste conta da<br />
vergonha <strong>que</strong> isso representa para mim? O <strong>que</strong> vou dizer, quando for ao<br />
Templo e encontrar os outros chefes de tribo? Hein, o <strong>que</strong> vou dizer? Que<br />
minha filha trabalha mais do <strong>que</strong> uma escrava? Não posso entender o <strong>que</strong><br />
está acontecendo aqui. Francamente, não posso entender.<br />
Mal o disse, algo lhe ocorreu - e o rosto imediatamente se lhe toldou.<br />
- Quero saber uma coisa - disse, num tom muito ominoso. - Ele já te<br />
desvirginou?<br />
Que merda: não tive coragem de enfrentá-lo. De súbito, eu era a criança<br />
assustada com <strong>que</strong>m gritava e em <strong>que</strong>m, volta e meia, batia: por<strong>que</strong> eu<br />
tinha derramado uma caneca de leite de cabra, por<strong>que</strong> eu não tinha varrido<br />
a casa - alguma coisa errada eu estava sempre fazendo, além de ter<br />
nascido feia, o <strong>que</strong> também era culpa minha e uma falta monstruosa. Não<br />
me perdoaria se contasse a verdade. Seria o fim do mundo. Talvez eu