A Mulher que Escreveu Bíblia Moacyr Scliar Em ... - Sua Alteza o Gato
A Mulher que Escreveu Bíblia Moacyr Scliar Em ... - Sua Alteza o Gato
A Mulher que Escreveu Bíblia Moacyr Scliar Em ... - Sua Alteza o Gato
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
enganosas, cheias de bandidos, o homem oferecera-se para conduzi-los a<br />
Jerusalém, oferta <strong>que</strong> fora aceita de bom grado: ele deveria inclusive<br />
guiá-los na volta. Tudo muito plausível, mas - por <strong>que</strong> o sujeito me<br />
fitava tão insistentemente? Até mesmo os anciãos o tinham notado; o<br />
ex-safado, a<strong>que</strong>le <strong>que</strong> me devia a assombrosa ereção, dizia, irônico (e<br />
não sem ciúmes), vai ver <strong>que</strong> o cara se apaixonou por ti.<br />
Eu precisava tirar a limpo a<strong>que</strong>la história. Uma tarde, já ao crepúsculo,<br />
encontrei o embuçado, sozinho, no corredor. É agora, pensei. Criando<br />
coragem, aproximei-me dele. Não se afastou; ao contrário, parecia esperar<br />
a<strong>que</strong>le momento. Por um instante, ficamos nos olhando, ele com a<strong>que</strong>la<br />
mirada fixa, hipnótica. Até <strong>que</strong> não agüentei.<br />
- Mas afinal, cara, o <strong>que</strong> <strong>que</strong>res comigo?<br />
Não respondeu de imediato. Quando o fez, foi numa voz rouca, quase<br />
inaudível.<br />
- Tu sabes <strong>que</strong>m eu sou.<br />
O pastorzinho. Deus do céu, era o pastorzinho. Minha primeira reação foi<br />
de júbilo; então, tu estás vivo, <strong>que</strong> bom, eu não sabia de ti, me afligi<br />
tanto, mas felizmente escapaste, <strong>que</strong> bom.<br />
Ele, contudo, não manifestava nenhum entusiasmo, nenhuma alegria. Eu<br />
pensara <strong>que</strong> ia me abraçar, ou, pelo menos, saudar-me com entusiasmo. Mas<br />
não, continuava me olhando, imóvel. O <strong>que</strong> me inquietou profundamente. O<br />
<strong>que</strong> significava a<strong>que</strong>le silêncio, a<strong>que</strong>le olhar fixo? Sem dúvida mudara, e<br />
muito. O rapaz <strong>que</strong> corria pelas sendas da montanha, o rapaz <strong>que</strong><br />
apascentava as cabras (e <strong>que</strong> as traçava), o rapaz <strong>que</strong> levara minha irmã<br />
para a caverna, o rapaz <strong>que</strong> se prontificara a entregar a carta a meu pai<br />
- não era a<strong>que</strong>le rapaz <strong>que</strong> eu tinha diante de mim. Era um tipo estranho,<br />
diferente, <strong>que</strong> me inspirava incontrolável temor. Por quê? O <strong>que</strong> o fizera<br />
mudar? Sim, passara por maus momentos, o apedrejamento, a expulsão, a<br />
luta com os soldados, a perda do braço - o <strong>que</strong> aliás explicava o manto:<br />
ele não <strong>que</strong>ria mostrar o aleijão. Nada disso explicava, porém, a<strong>que</strong>la<br />
frieza, a<strong>que</strong>le distanciamento; sobretudo, nada explicava o brilho um<br />
tanto alucinado <strong>que</strong> eu via em seu olhar e <strong>que</strong> me deixava intimidada:<br />
como se eu fosse responsável por seus sofrimentos. Criei coragem: o <strong>que</strong><br />
aconteceu contigo perguntei. Ele hesitou, olhou ao redor.<br />
- Aqui não dá para falar. Podemos ir para um lugar mais reservado?<br />
Eu disse <strong>que</strong> sim, <strong>que</strong> poderíamos conversar na minha sala. Então tens uma<br />
sala no palácio, observou irônico, uma sala só para ti.<br />
- Está bem. Vamos até lá.<br />
Fomos. No corredor cruzamos com um dos anciãos, <strong>que</strong> nos olhou,<br />
suspeitoso. Que nos olhasse suspeitoso, eu estava cagando. Precisava<br />
falar com o pastorzinho, precisava saber o <strong>que</strong> estava se passando. Por<strong>que</strong><br />
alguma coisa, disso agora estava certa, estava se passando.<br />
Entramos, fechei a porta. Com muita dificuldade, e usando como podia o<br />
coto do braço, livrou-se das pesadas vestes.