A Mulher que Escreveu Bíblia Moacyr Scliar Em ... - Sua Alteza o Gato
A Mulher que Escreveu Bíblia Moacyr Scliar Em ... - Sua Alteza o Gato
A Mulher que Escreveu Bíblia Moacyr Scliar Em ... - Sua Alteza o Gato
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
<strong>que</strong> aquilo era para fazer a pessoa, com o olhar perdido, pensar sobre a<br />
vida, sobre o mundo... - Sim, nas reticências talvez haja lugar para<br />
mim... A pessoa <strong>que</strong> vir a<strong>que</strong>les três pontinhos dirá, hum, mas então a<br />
história de Salomão não é só o <strong>que</strong> está descrito em palavras... Há mais<br />
coisas. E ao se perguntar <strong>que</strong> coisas serão essas talvez lhe ocorra, na<br />
lista das possibilidades, uma foda com certa concubina... Grande foda...<br />
Prometi-lhe <strong>que</strong>, no relato sobre Salomão, poria reticências. Na verdade,<br />
era pouco provável <strong>que</strong> tivesse chance para isso. Assim como ela adorava<br />
sinais gráficos, os anciãos os detestavam; para <strong>que</strong> interrogação ou<br />
exclamação, se Deus não pergunta nem se admira? Para <strong>que</strong> reticências, se<br />
Deus não é reticente?<br />
Foi a única vez <strong>que</strong> menti a Mikol. Nos poucos meses em <strong>que</strong> convivemos -<br />
e nos encontrávamos no jardim quase todas as noites -, a fran<strong>que</strong>za marcou<br />
nosso relacionamento. A fran<strong>que</strong>za e a afeição. Eu a amava. Mikol era<br />
tudo para mim: a mãe <strong>que</strong> não se omitia, o pai <strong>que</strong> não era grosseiro, a<br />
irmã <strong>que</strong> não mentia, o marido <strong>que</strong> não me rejeitava. Junto a ela eu me<br />
sentia feliz. Não completamente feliz. Por causa de Salomão, claro. Ela<br />
tentava me consolar. Ele vai te chamar, dizia, é <strong>que</strong>stão de tempo.<br />
Quanto tempo, eu <strong>que</strong>ria saber: muito tempo, pouco tempo? Semanas, dias,<br />
anos? Um dia em <strong>que</strong> eu, impaciente, lhe cobrava uma resposta, ela,<br />
melancólica - mas acho <strong>que</strong> era um desabafo, o único <strong>que</strong> se permitiu<br />
durante a nossa convivência -, respondeu:<br />
- Tu tens tempo. Eu é <strong>que</strong> não tenho.<br />
Não entendi. Por <strong>que</strong> não teria tempo, ela? Não era uma mulher jovem, mas<br />
estava longe de ser uma anciã. Por <strong>que</strong> não teria tempo?<br />
<strong>Em</strong> resposta, pegou-me a mão e colocou-a sobre o ventre. Havia algo<br />
na<strong>que</strong>la barriga, algo volumoso e duro, duro como pedra. Uma gravidez,<br />
foi o <strong>que</strong> me ocorreu, e de imediato fui tomada de um acesso de ciúmes,<br />
tão violento quanto absurdo. Apesar do <strong>que</strong> tinha me dito, <strong>que</strong> já não<br />
mantinha relações sexuais, achei <strong>que</strong> esperava um filho - de Salomão.<br />
Desse bebê - um filho do rei - teria de cuidar, não de mim.<br />
Sem dificuldade, ela adivinhou o <strong>que</strong> eu estava pensando. E sorriu,<br />
triste:<br />
- Não, não estou grávida. Na minha idade seria difícil, não é? E depois...<br />
Não posso por um filho no mundo, não sou digna disso. Não, não é<br />
gravidez. É um tumor <strong>que</strong> tenho aí dentro, um tumor <strong>que</strong> cresce sem parar.<br />
Isso <strong>que</strong>r dizer <strong>que</strong> estou muito doente. Que vou morrer em breve.<br />
Eu não podia acreditar no <strong>que</strong> ela me dizia, sobretudo por causa de sua<br />
resignada tranqüilidade. Tinha um tumor? E ia morrer? Mas por quê? Por<br />
<strong>que</strong> aceitava a<strong>que</strong>le destino injusto, monstruoso? De súbito invadia-me<br />
uma enorme culpa. Eu ali, <strong>que</strong>ixando-me de minha feiúra, como se fosse a<br />
maior tragédia do universo, e a pobre Mikol morrendo. Eu, egoísta, nem<br />
se<strong>que</strong>r atentara para a gravidade de seu estado. Agora me dava conta de<br />
como ela tinha emagrecido e decaído nas últimas semanas. Estava pálida,<br />
enfra<strong>que</strong>cida. Eu achava <strong>que</strong> estava fazendo uma dieta - tinha dessas<br />
manias, havia época em <strong>que</strong> só comia laranja ou romã. Mas não era dieta<br />
coisa nenhuma, eu estava me enganando, era doença mesmo, doença grave,<br />
mortal.