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A Mulher que Escreveu Bíblia Moacyr Scliar Em ... - Sua Alteza o Gato

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quando meu pai lhe dava uma ordem qual<strong>que</strong>r. Não estaria tentando<br />

subverter a ordem na família do patriarca, instrumentalizando a feia<br />

primogênita numa atividade reservada a homens, e só a alguns homens?<br />

A mim pouco importava. Tendo descoberto o mundo da palavra escrita, eu<br />

estava feliz, muito feliz. Escondida na caverna da montanha (minha<br />

habilidade teria de ficar em segredo, conforme recomendação do próprio<br />

escriba), eu passava os dias escrevendo, à tênue luz de uma lamparina.<br />

Escrevendo o quê? Qual<strong>que</strong>r coisa. Pensamentos Versos. Histórias,<br />

sobretudo histórias. Histórias <strong>que</strong> eu inventava e nas quais era sempre a<br />

bela heroína cuja atenção príncipes, encantados ou não, disputavam.<br />

Histórias verdadeiras, histórias de nossa gente, <strong>que</strong> o escriba me contava<br />

e <strong>que</strong> eu transcrevia no pergaminho.<br />

Falava de meu pai; um homem bonito e vigoroso, um <strong>que</strong> conduzia sua gente<br />

pelo deserto até o oásis junto a montanha: aqui construiremos nossas<br />

casas, aqui fundaremos uma grande cidade. Escrevendo sobre meu pai, eu,<br />

de algum modo, adquiria ascendência sobre ele; eu era uma mulher sábia e<br />

poderosa, ele um menino perplexo e assustado. Mas a narrativa ficou só<br />

no início; para nela prosseguir eu precisaria de seu apoio, <strong>que</strong> ele nunca<br />

me daria. Esta história está na minha cabeça, diria, enfurecido, só conto<br />

quando quiser.<br />

A mim isso não importava. Bastava-me o ato de escrever. Colocar no<br />

pergaminho letra após letra, palavra após palavra, era algo <strong>que</strong> me<br />

deliciava. Não era só um texto <strong>que</strong> eu estava produzindo; era beleza, a<br />

beleza <strong>que</strong> resulta da ordem, da harmonia. Eu descobria <strong>que</strong> uma letra<br />

atrai outra, <strong>que</strong> uma palavra atrai outra, essa afinidade organizando não<br />

apenas o texto, como a vida, o universo. O <strong>que</strong> eu via, no pergaminho,<br />

quando terminava o trabalho, era um mapa, como os mapas celestes <strong>que</strong><br />

indicavam a posição das estrelas e planetas, posição essa <strong>que</strong> não<br />

resulta do acaso, mas da composição de misteriosas forças, as mesmas<br />

<strong>que</strong>, em escala menor, guiavam minha mão quando ela deixava seus sinais<br />

sobre o pergaminho. Tratava-se de poder, de um poder <strong>que</strong> eu aos poucos<br />

ia assumindo. Uma experiência embriagadora <strong>que</strong> não podia partilhar com<br />

ninguém: minha mãe morreria de susto se soubesse, minhas irmãs se<br />

morderiam de inveja. A única pessoa a <strong>que</strong>m eu tinha vontade de contar o<br />

<strong>que</strong> acontecia era o pastorzinho. Diria a ele <strong>que</strong> minha vida tinha agora<br />

um sentido, um significado: feia, eu era, contudo, capaz de criar beleza.<br />

Não a falsa beleza <strong>que</strong> os espelhos enganosamente refletem, mas a<br />

verdadeira e duradoura beleza dos textos <strong>que</strong> eu escrevia, dia após dia,<br />

semana após semana - como se estivesse num estado de permanente e<br />

deliciosa embriaguez.<br />

Sim, eu me sentia transportada para outro mundo, outra realidade. Tudo<br />

ficara es<strong>que</strong>cido. A pedra também? Sim, a pedra também, incrédulos.<br />

Pedra? Para <strong>que</strong> pedra? Para <strong>que</strong> fantasia, se a fantasia agora estava ao<br />

meu alcance, eu podendo criá-la a qual<strong>que</strong>r instante?<br />

Pensar na pedra era algo <strong>que</strong> eu raramente fazia, mas <strong>que</strong> me dava<br />

remorsos - remorsos tão intensos <strong>que</strong> uma vez não pude resistir e fui ao<br />

esconderijo ver se ela ainda estava lá, no lugar em <strong>que</strong> eu a pusera. No<br />

primeiro momento, não a encontrei, e levei um susto. Alguém a levou, foi<br />

o <strong>que</strong> de imediato pensei. Mas <strong>que</strong>m? E por quê? A pedra - o formato<br />

ovóide, a lisa superfície - seria usada como objeto decorativo em alguma<br />

casa, ou teria outro propósito a<strong>que</strong>le, ou a<strong>que</strong>la, <strong>que</strong> dela se apossara?

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