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A Mulher que Escreveu Bíblia Moacyr Scliar Em ... - Sua Alteza o Gato

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mal redigido, e até com erros de grafia. Como fonte de subsídios tudo<br />

bem, mas para o livro <strong>que</strong> Salomão <strong>que</strong>ria, eu teria de começar desde o<br />

início. Quando me dei conta disso minha coragem sumiu de novo. De repente<br />

a imensidão da tarefa me esmagava; de repente eu já não era a mulher<br />

confiante, segura de si, eu era uma garotinha desamparada, tudo o <strong>que</strong> eu<br />

<strong>que</strong>ria era minha mãe segurando-me ao colo como fazia quando eu era<br />

criança e tinha febre. Deixei de lado os pergaminhos e deitei-me,<br />

arrasada.<br />

Mas não, não podia entregar-me ao desanimo. Precisava vencer a<strong>que</strong>la<br />

inércia, a<strong>que</strong>la plúmbea melancolia <strong>que</strong> ameaçava se apossar de mim e<br />

aprisionar-me talvez para sempre. Eu tinha uma história para contar - eu<br />

tinha uma grande história para contar - e iria contá-la. Saltei da cama<br />

como <strong>que</strong> impulsionada, voltei para a mesa, empunhei o cálamo. Vacilei,<br />

porém. Como começar? Fechei os olhos - e nesse momento, vi. Diante de<br />

mim uma figura imensa, indefinida, uma diáfana presença imóvel sobre um<br />

infinito, escuro oceano. Foi só o <strong>que</strong> eu vi, mas era suficiente. Na<br />

fração de segundo <strong>que</strong> durou essa visão, pude sentir, na remota figura, a<br />

tensão, por toda a eternidade contida: a tensão do universo gestado, mas<br />

não criado, a tensão do tempo detido, pronto a iniciar o seu fluxo. De<br />

algum modo uma infinitesimal fração da<strong>que</strong>la incalculável energia a mim<br />

se transmitiu. Foi o suficiente: molhei o cálamo na tinta e escrevi: "No<br />

começo".<br />

E aí parei, e já não sabia como continuar. Entre a tensão e o ato caiu a<br />

sombra, o mistério. No começo - o <strong>que</strong>, mesmo, tinha acontecido no começo?<br />

Minha cabeça estava oca, vazia; eu já não lembrava nada do <strong>que</strong> tinha<br />

lido nas pilhas de manuscritos; as palavras <strong>que</strong> eu tinha escrito<br />

pareciam-me mais um enigma do <strong>que</strong> qual<strong>que</strong>r outra coisa. Então meu olhar<br />

se desviou, e eu já não fitava mais as letras e sim o pergaminho, a<strong>que</strong>la<br />

granulosa superfície.<br />

O pergaminho. Era <strong>que</strong> dali deveria partir rumo às origens, do couro do<br />

animal sacrificado para <strong>que</strong> um dia eu pudesse nele escrever. O couro;<br />

antes do couro, a cabra; antes da cabra, as folhas <strong>que</strong> ela mastigara;<br />

antes das folhas, a árvore, a Terra, o universo. Eu precisava refazer<br />

a<strong>que</strong>la história, o <strong>que</strong> significava voltar no tempo séculos e milênios,<br />

precipitar-me no redemoinho cósmico <strong>que</strong> me levaria... Para onde? Merda,<br />

eu não sabia, e aquilo estava me levando, e com uma rapidez assombrosa,<br />

a um estado de loucura, mas não loucura comum, loucura existencial, coisa<br />

muito séria, coisa para filósofo, não para mocinha feia. O <strong>que</strong> fazer?<br />

Vamos de Deus mesmo, pensei, em desespero, e aquilo me deu enorme alívio.<br />

Deus: essa era uma idéia na qual eu podia repousar. Não: uma idéia na<br />

qual eu podia me dissolver, mais completamente do <strong>que</strong> o sal se dissolve<br />

na água. A cabra <strong>que</strong> berrasse no passado, o couro da cabra <strong>que</strong> me<br />

acusasse no presente. Eu ia de Deus. Por <strong>que</strong> Deus e não Deusa? Por <strong>que</strong><br />

Jeová e não Astarté, a divindade <strong>que</strong> outros povos da região veneravam?<br />

Por <strong>que</strong> barba e não face lisa, com no máximo alguns sinais ou talvez até<br />

muitos sinais? Por uma simples e definitiva razão: eu não podia começar<br />

o grande livro criando caso, ainda mais com meu patrocinador. Salomão<br />

falava em Deus, os velhos falavam em Deus, meu pai falava em Deus. Deus!,<br />

bradavam as rochas da montanha. Deus!, gritavam os pássaros, os canoros<br />

e os mudos. Deus, portanto. Na minha cabeça, Deus seria apenas a energia<br />

geradora, não uma figura antropomórfica a reinar sobre a criação. Que<br />

Salomão e outros o imaginassem como homem, a mim não importava.<br />

Expressaria minha descrença, e meu protesto, abstendo-me de descrever a

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