14.04.2013 Views

A Mulher que Escreveu Bíblia Moacyr Scliar Em ... - Sua Alteza o Gato

A Mulher que Escreveu Bíblia Moacyr Scliar Em ... - Sua Alteza o Gato

A Mulher que Escreveu Bíblia Moacyr Scliar Em ... - Sua Alteza o Gato

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

os filisteus. Falavam da Jerusalém <strong>que</strong> construíra, e para a qual trouxera<br />

a Arca da Aliança. Falavam de suas vitórias sobre os filisteus, edomitas,<br />

moabitas, amonitas, cananeus, vitórias essas <strong>que</strong> haviam resultado em<br />

considerável ampliação do reino.<br />

Ao mesmo tempo, não podiam escamotear episódios menos gloriosos, como a<br />

trágica revolta do filho Absalão, <strong>que</strong> por sinal morrera lutando contra o<br />

pai; e a muito perturbadora história com Betsabá, <strong>que</strong> narraram<br />

constrangidos, sem se olharem, sem me olhar. E havia razões para tal. O<br />

modo pelo qual Davi se livrara de Urias, marido de Betsabá, por <strong>que</strong>m<br />

estava apaixonado, fora simplesmente repulsivo: enviara o oficial para<br />

um posto perigoso na frente de combate, onde, de acordo com o esperado,<br />

o homem viera a morrer. Deus, <strong>que</strong> tudo vê, havia castigado essa<br />

ignomínia: o primeiro filho do casal morrera. Mas o segundo sobrevivera<br />

e se tornara rei. O rei Salomão.<br />

Com essa história tudo ficou subitamente claro a meus olhos. De repente<br />

eu compreendia Salomão, seu desejo por mulheres, especialmente belas<br />

mulheres. E identificava também uma fissura no sólido edifício de sua<br />

estabilidade emocional. Não se sentiria ele perseguido pela sombra do<br />

irmão, por essa sombra espreitado desde os desvãos do palácio, desde os<br />

reposteiros do Templo - desde a penumbra da alcova, a alcova na qual<br />

inexplicavelmente broxara? Sombras são obíquas, ocultam-se em qual<strong>que</strong>r<br />

lugar, em qual<strong>que</strong>r coisa, numa planta, carnívora ou não, num mamífero,<br />

num pássaro: o corvo <strong>que</strong>, no jardim, crocitava, zombeteiro ou o pombo<br />

<strong>que</strong> nunca voava e <strong>que</strong> a todos fitava com um olhinho preto e duro como um<br />

grão - tinham tudo para serem portadores da alma penada, a<strong>que</strong>le corvo,<br />

a<strong>que</strong>le pombo. Talvez por isso tivesse estudado a linguagem dos pássaros:<br />

para interrogar cada corvo, cada pombo, perguntando, o <strong>que</strong> <strong>que</strong>res de mim,<br />

mano, não tenho culpa de <strong>que</strong> a mão de Deus tenha te ferido, não tenho<br />

culpa de teres sido escolhido para expiar o pecado de nosso pai e nossa<br />

mãe. Mas, e aí estava o nó da <strong>que</strong>stão, havia uma razão para <strong>que</strong> Salomão<br />

se sentisse culpado. O irmão morrera para <strong>que</strong> pudesse viver - e viver em<br />

esplendor, no meio do luxo e da ri<strong>que</strong>za, com setecentas mulheres e<br />

trezentas concubinas. Quando Salomão pedira a Deus <strong>que</strong> lhe desse<br />

sabedoria, não estava apenas <strong>que</strong>rendo entender os homens. Estava <strong>que</strong>rendo<br />

entender a si próprio. Mais do <strong>que</strong> isso, <strong>que</strong>ria entender o passado -<br />

tarefa complexa, projeto gigantesco para o qual eu fora mobilizada: o<br />

livro não seria apenas o pretenso monumento cultural, seria um farol no<br />

tempo, uma resposta ao enigma. Salomão precisava encontrar um sentido na<br />

trajetória histórica da qual era parte integrante. Se pudesse evidenciar<br />

<strong>que</strong> nele culminava um longo processo iniciado com o primeiro homem e a<br />

primeira mulher, se pudesse mostrar <strong>que</strong> em sua pessoa se concentravam as<br />

misérias e as grandezas do passado, a virtude e o pecado, o acerto e o<br />

erro, se conseguisse provar-se um feixe de contradições - mas também um<br />

ser humano lutando para tornar-se justo, para julgar bem os outros e a<br />

si mesmo, para entregar um disputado bebê à verdadeira mãe, talvez então<br />

a alma do irmão o deixasse em paz e partisse em busca de seu merecido<br />

repouso no Vale das Sombras da Morte. Esse era, pois, o verdadeiro<br />

objetivo do texto em <strong>que</strong> eu trabalhava: a História como exorcismo. Mal<br />

sabia Salomão <strong>que</strong> eu tentava infiltrar-me na narrativa, <strong>que</strong> eu <strong>que</strong>ria<br />

substituir, nas entrelinhas, o espectro do insatisfeito irmão pelo<br />

espectro do meu insatisfeito sexo. Muita coisa na<strong>que</strong>las entrelinhas,<br />

hein? Muita coisa.<br />

Assombrações são contagiosas. Tendo escrito sobre o irmão morto, passei

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!