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A Mulher que Escreveu Bíblia Moacyr Scliar Em ... - Sua Alteza o Gato

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eles, decidiam o <strong>que</strong> era importante para o livro. O velho safado - a<br />

essa altura com ar sempre compenetrado - fazia as vezes de relator.<br />

Cabia-lhe também formular as restrições ao meu trabalho, restrições essas<br />

<strong>que</strong> iam diminuindo à medida <strong>que</strong> eu pegava o jeito da coisa. A orientação<br />

era não inventar. Penetrando no texto, eu deveria deixar de fora toda<br />

visão pessoal, todo viés contestador. Seria neutra, impessoal. Nada de<br />

comentários colaterais. Isso ficaria, diziam os anciãos, para os sábios<br />

de gerações futuras. E eu obedecia. Claro, continuava estranhando certas<br />

passagens. Por <strong>que</strong> José não comera a mulher de Putifar, deixando assim<br />

todos contentes, inclusive o próprio Putifar? Uma dúvida <strong>que</strong> guardava<br />

para mim. Os velhos ficariam ofendidos se eu fizesse a pergunta. De todo<br />

modo, não <strong>que</strong>ria mais bater boca; simplesmente perdera a tesão para a<br />

coisa. Nos momentos de maior depressão, pensava em me mandar dali, em<br />

fugir do harém, em ir para qual<strong>que</strong>r lugar onde não precisasse escrever,<br />

ou pensar, ou debater. Mas então vinha-me à mente a figura de Salomão, e<br />

meu amor por ele exercia sobre mim um efeito poderoso. Eu como <strong>que</strong><br />

recobrava a energia e voltava ao trabalho, por chato <strong>que</strong> fosse. Mal sabia<br />

eu <strong>que</strong> o destino ainda me reservava uma dura provação.<br />

Aconteceu uma noite. Depois <strong>que</strong> entrara na rotina do trabalho, o meu<br />

sono, antes agitado, tornara-se bruto, pesado, sono sem sonhos. Nada de<br />

vacas magras ou vacas gordas; comigo, José perderia o seu tempo. Mas<br />

na<strong>que</strong>la noite foi diferente. A certa altura despertei, sobressaltada,<br />

ouvindo risinhos, cochichos, suspiros de gozo - o <strong>que</strong> era aquilo? Estaria<br />

ficando maluca?<br />

Não, não estava. Os ruídos vinham dos aposentos ao lado. Um dos<br />

dormitórios de Salomão - ele tinha vários, espalhados pelo palácio;<br />

dizia-se também <strong>que</strong> às vezes ia de dormitório em dormitório, atendendo<br />

as mulheres <strong>que</strong> ali estavam, o <strong>que</strong> me cheirava a propaganda de sua<br />

potência sexual; mais provável era <strong>que</strong> se tratasse de uma <strong>que</strong>stão de<br />

segurança. Mas, enfim: ali estava o rei - identifi<strong>que</strong>i logo sua voz, sua<br />

característica gargalhada - recebendo uma mulher do harém. Evidentemente,<br />

estavam se divertindo muito. Pelo <strong>que</strong> eu podia ouvir, era um vale-tudo:<br />

agora chupa, agora deita de bruços.<br />

Que trepasse, tudo bem, estava no seu direito. Que percorresse, do<br />

começo ao fim, o catálogo das abominações: ok, ok. Mas, por <strong>que</strong> na<strong>que</strong>le<br />

aposento? Será <strong>que</strong> não sabia <strong>que</strong> eu estava do outro lado da parede,<br />

sentada no leito, olhos muito abertos, punhos cerrados, ouvindo, ouvindo,<br />

ouvindo?<br />

Sabia, sim. Ele sabia tudo. Não era ele o homem mais sábio do mundo, o<br />

homem <strong>que</strong> até falava com os pássaros? Sabia, claro <strong>que</strong> sabia. E se sabia,<br />

das duas uma: ou não dava bola para minha presença, ou dava bola para<br />

minha presença.<br />

Se não dava bola para minha presença, eu precisava renunciar de uma vez<br />

às minhas ilusões: deixa de lado todas as tuas esperanças, ó tu, <strong>que</strong> és<br />

feia e só sabes redigir, enfia a viola no saco, vai cantar em outra<br />

freguesia, es<strong>que</strong>ce para sempre o Salomão com <strong>que</strong>m sonhaste e <strong>que</strong> te<br />

acordou no meio da noite sinalizando, com seus gemidos de gozo, a<br />

inutilidade de teu sofrimento amoroso.<br />

Conclusão cruel; ao menos, porém, confrontava-me inexoravelmente com a<br />

realidade. Eu teria de decidir se continuava com a<strong>que</strong>la comédia ou não.

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