A Mulher que Escreveu Bíblia Moacyr Scliar Em ... - Sua Alteza o Gato
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esposta a essa situação só poderia ser a revolta - como a do<br />
pastorzinho - mas também o nascimento de uma nova religião. Nela, o<br />
Jeová enigmático, autoritário, seria substituído por um Deus-Pai,<br />
todo-poderoso, sim, mas ao mesmo tempo misericordioso. E haveria um<br />
Filho, com <strong>que</strong>m as pessoas poderiam se identificar em sua aflição; esse<br />
Filho, sob forma humana, pregaria o amor e a justiça, realizaria<br />
milagres, curaria enfermos - eu estava lembrando o desespero de minha<br />
amiga Mikol, doente e sem ter a <strong>que</strong>m recorrer. Naturalmente seria<br />
sacrificado pelos representantes do Império e seus cúmplices locais, mas<br />
ressurgiria de entre os mortos e ascenderia aos céus. Ah, sim, este<br />
Filho teria uma Mãe, uma figura feminina muito diferente da Eva ou mesmo<br />
das matriarcas (ou da minha omissa genitora), uma Mãe <strong>que</strong> seria o símbolo<br />
da bondade, uma figura feminina mediante a qual os fiéis poderiam apelar<br />
ao Pai e ao Filho. A Trindade se completaria com um Espírito Santo,<br />
simbolizado por uma ave - não os corvos com <strong>que</strong>m Salomão gostava muitas<br />
vezes de conversar, mas por um puro e inocente pombo, muito diferente<br />
dos pombos do palácio, neles incluídos os portadores de almas penadas.<br />
<strong>Em</strong> vez de um Templo central, com seus custosos sacrifícios, surgiriam<br />
milhares de templos, grandes e pe<strong>que</strong>nos, ricos e pobres, onde todos<br />
poderiam comparecer sem problemas, sem oferecer sacrifícios; sacerdotes<br />
ouviriam as pessoas e absolveriam seus pecados, livrando-as de nossa<br />
milenar culpa. O papo de Povo Eleito acabaria, a nova religião<br />
procuraria conquistar adeptos entre todos os povos, terminando inclusive<br />
com a<strong>que</strong>la história de se distinguir dos outros pela circuncisão. Diante<br />
da amplitude dessa nova religião, a glória de Salomão simplesmente seria<br />
eclipsada.<br />
Estava nascendo o dia quando terminei de escrever. Olhei os pergaminhos,<br />
mais de dez. O <strong>que</strong> fazer com aquilo? Mostrar aos anciãos? De maneira<br />
nenhuma. Eu podia facilmente imaginar a reação deles: aos gritos de<br />
abominação, abominação levariam o material a Salomão, pedindo <strong>que</strong> eu<br />
fosse castigada exemplarmente. Mesmo por<strong>que</strong> a tarefa estando praticamente<br />
terminada, já não precisavam de mim.<br />
Não, eu não podia mostrar aquilo a ninguém. O <strong>que</strong> eu tinha de fazer era<br />
outra coisa: guardar os manuscritos num recipiente qual<strong>que</strong>r, como um<br />
jarro cuidadosamente selado, e depositá-lo no fundo de certa caverna<br />
situada em certa montanha. Ali os pergaminhos repousariam por muito<br />
tempo, por séculos talvez. Até <strong>que</strong> um dia alguém - um pastorzinho,<br />
talvez, em busca de sua <strong>que</strong>rida cabra extraviada - descobrisse ali a<br />
mensagem vinda do passado. E então diriam, com admiração, era sábia<br />
a<strong>que</strong>la mulher. Procurariam em vão os meus ossos, para exibi-los aos<br />
curiosos, mas não os encontrariam. O <strong>que</strong> restasse de mim estaria no<br />
texto, no salino resíduo das lágrimas <strong>que</strong> eu ali havia derramado. Mas,<br />
como chegar à caverna? Era nisso <strong>que</strong> eu pensava, quando bateram à porta.<br />
Era a encarregada do harém. Com um anúncio:<br />
- Estão todos convocados para comparecer ao grande salão do palácio. É<br />
urgente.<br />
Senti uma vertigem. Urgente? Então tinha acontecido? Aquilo <strong>que</strong> eu<br />
previra, tinha acontecido? Agarrei-a pelas vestes, histérica, o <strong>que</strong><br />
houve, me diz, o <strong>que</strong> houve com o rei. Ela me olhava espantada - e<br />
irritada:<br />
- O <strong>que</strong> é isso, mulher? - gritou, desvencilhando-se de mim. -