A Mulher que Escreveu Bíblia Moacyr Scliar Em ... - Sua Alteza o Gato
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ancião - de pau duro. E talvez aquilo o inspirasse; talvez, indignado,<br />
pusesse o velho a correr, dizendo, na minha esposinha ninguém põe a mão,<br />
vem, <strong>que</strong>rida, vem, es<strong>que</strong>ce esse mostrengo, deitemo-nos e amemo-nos.<br />
Esperança vã, contudo. Salomão não apareceria; um guarda talvez sim, se<br />
eu gritasse mais alto. Mas eu não <strong>que</strong>ria gritar mais alto, não <strong>que</strong>ria<br />
magoar o homem, <strong>que</strong>, de alguma forma, me estava prestando uma homenagem.<br />
Disse-lhe, portanto, <strong>que</strong> muito me sensibilizava a<strong>que</strong>la declaração dele,<br />
e <strong>que</strong> em outras circunstƒncias não hesitaria em acolhê-lo no meu leito,<br />
mas <strong>que</strong> no momento não era possível, toda minha atenção estava<br />
concentrada no trabalho, só no trabalho.<br />
Não me ouvia. Aproximou-se devagarinho, olhos brilhando, trêmulo de<br />
desejo. E aí, com surpreendente agilidade, tentou agarrar-me. Repeli-o,<br />
delicada mas firmemente. Tentou de novo, e dessa vez o empurrei, com<br />
tanta força <strong>que</strong> ele caiu e rolou pelo chão. Quis levantar-se,<br />
embaraçou-se na túnica, caiu de novo. Tão cômico era aquilo, tão<br />
patético, <strong>que</strong> não pude conter-me e caí na gargalhada. O <strong>que</strong> o deixou<br />
fora de si. Pôs-se de pé, e, ainda cambaleando, apontou-me um dedo irado:<br />
- Estás rindo, tu? Tu estás rindo? Rindo de mim, cadela do deserto? Rindo<br />
por<strong>que</strong> eu quis trepar contigo, coisa <strong>que</strong> ninguém jamais fará, muito menos<br />
o Salomão? Vai te enxergar, mulher. Tu és um bagulho, és um monstro de<br />
tão feia. Mesmo assim eu, e só por pena, te ofereci sexo. E tu recusaste!<br />
Idiota! Mas não perdes por esperar.<br />
Mirou-me, triunfante no seu ódio:<br />
- Sabes <strong>que</strong>m os anciãos encarregaram de dar o parecer final sobre o<br />
texto? Sabes <strong>que</strong>m? Eu. Eu mesmo. Estou encarregado de dar um parecer<br />
sobre a merda <strong>que</strong> escreveste. Agora: adivinha qual será o parecer!<br />
Adivinha! Isto aqui é lixo, desgraçada! Isto aqui é abominação!<br />
Tentou rasgar o pergaminho - para atirar os pedaços na minha cara,<br />
decerto -, mas, sendo o couro resistente, não o conseguiu. Tentou, tentou<br />
- nada. Por fim, atirou-o no chão e se foi, resmungando impropérios.<br />
Minha sensação era de triunfo: de algum modo preservara minha dignidade.<br />
De algum modo vingara-me do espelho e de todos quantos haviam debochado<br />
de mim. Vingança esquisita, vingança melancólica, mas vingança.<br />
Havia um outro motivo de satisfação. Meu texto acabara de ser, ainda <strong>que</strong><br />
grotescamente, testado. O velho fora uma espécie de cobaia. Se eu<br />
conseguira enlou<strong>que</strong>cê-lo, Salomão não me resistiria. O <strong>que</strong> eu tinha de<br />
fazer era isso: continuar com lúbricas descrições, até <strong>que</strong>, arrebatado,<br />
ele invadisse meu quarto, gritando não posso mais, <strong>que</strong>ro-te agora,<br />
<strong>que</strong>ro-te toda para mim. Tens não apenas o texto, eu lhe diria, como<br />
também a autora. E seríamos felizes para sempre. Com essa certeza fui<br />
dormir, satisfeita.<br />
O incidente com o velho teria, porém, sérias conseqüências, como logo<br />
vim a descobrir. Acordei de manhã cedo com um guarda batendo - e dessa<br />
vez eram batidas fortes, insistentes - à porta. Salomão ordenava <strong>que</strong> eu<br />
comparecesse à sala do trono. Fui, e já agora com maus presságios.<br />
Lá estava o rei, sentado no seu trono. Junto a ele os seis macróbios,<br />
todos de cara amarrada: boas coisas o velho não lhes teria contado.