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A Mulher que Escreveu Bíblia Moacyr Scliar Em ... - Sua Alteza o Gato

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Era um homem bonito <strong>que</strong> eu tinha diante de mim, não o garoto <strong>que</strong><br />

conhecera no passado. Contudo, a expressão do rosto - ainda com<br />

cicatrizes das pedradas <strong>que</strong> recebera - era amarga, selvagem mesmo.<br />

Amargura como a<strong>que</strong>la eu ainda não tinha visto. Mas ele não era da<strong>que</strong>les<br />

<strong>que</strong> ficam chafurdando no próprio ressentimento. Olhou ao redor,<br />

certificando-se de <strong>que</strong> estávamos a sós, de <strong>que</strong> ninguém podia nos ouvir.<br />

E então, aproximando-se de mim, disse, num tom confidencial:<br />

- Estou aqui com uma missão. Não se trata apenas de conduzir a caravana<br />

da rainha. Isso foi um pretexto para entrar no palácio. Minha missão é<br />

outra. Minha missão tem a ver com vingança. Sagrada vingança.<br />

Só então notei os punhais <strong>que</strong> levava à cintura. E estremeci: dois<br />

punhais, um de cada lado, punhais recurvos, punhais de assassino. O<br />

homem estava falando sério. Pelo visto, alguém pagaria pelo braço <strong>que</strong><br />

ele perdera. Adivinhou-me o pensamento, sorriu, amargo.<br />

- Deves achar <strong>que</strong> é uma coisa pessoal, <strong>que</strong> <strong>que</strong>ro me vingar dos soldados<br />

do rei. Estás enganada. Se <strong>que</strong>res saber, perder o braço foi até uma<br />

bênção para mim. Foi uma mensagem divina, <strong>que</strong> me obrigou a pensar sobre<br />

minha vida e meu destino. Quem era eu, antes disto? Tu sabes muito bem:<br />

um pecador, um depravado. Pois se até com cabras eu tinha relações<br />

sexuais, imagina.<br />

Constrangida pausa, mas, já <strong>que</strong> começara, iria até o fim.<br />

- Eu era um mestre nisso. Aproximava-me por trás, entoando baixinho a<br />

canção <strong>que</strong>, eu sabia, enfeitiçava-as, e então, crã, possuía-as; uma,<br />

duas, três, não havia limite para a<strong>que</strong>la abominação. Pobres cabras,<br />

pobres criaturas, pagavam o preço da minha tesão. E com tua irmã foi a<br />

mesma coisa: abominação em cima de abominação. Mas aí é por<strong>que</strong> ela pedia,<br />

não por<strong>que</strong> eu exigisse. Sinto te dizer, mas ela é uma pecadora tão grande<br />

quanto eu. Pensei <strong>que</strong> me amasse, mas não, o negócio dela era outro, era<br />

sexo baixo, vil. E eu paguei o preço.<br />

Eu ouvia. Horrorizada? Não, horrorizada não. Fascinada? Não, fascinada<br />

também não. Ouvia-o, simplesmente. E não sabia o <strong>que</strong> pensar da<strong>que</strong>la<br />

surpreendente confissão.<br />

- Teu pai mandou me apedrejar e me expulsou - prosseguiu -, mas o castigo<br />

de nada adiantou. Não foi a lição de <strong>que</strong> eu precisava. Por<strong>que</strong> ele estava<br />

apenas se vingando, compreendes? Ele não estava agindo em nome do Bem,<br />

estava agindo em seu próprio nome, castigando-me para manter sua<br />

reputação. Não mudei em nada. Deixei a nossa terra, vim para Jerusalém,<br />

continuei na senda do pecado. Depois <strong>que</strong> a gente começa, tu sabes, é<br />

difícil parar. E não eram só as coitadas <strong>que</strong> eu pegava na rua, não. Até<br />

aqui no palácio tive uma amante, uma concubina velha... Ela me viu uma<br />

vez, da janela, e se apaixonou por mim. Escapava do harém para se<br />

encontrar comigo. Pensas <strong>que</strong> fui grato a essa mulher? Nada. Explorei-a o<br />

<strong>que</strong> deu. Tirei-lhe jóias, tirei-lhe dinheiro...<br />

Pobre Mikol. Pobre, pobre Mikol.<br />

- E foi aí <strong>que</strong> te encontrei. Fazia dias <strong>que</strong> eu não via a mulher, o <strong>que</strong><br />

era um desastre: sem a ajuda dela eu até passava fome, precisava pedir<br />

esmola. Tive a idéia de me colocar junto ao muro do palácio tocando

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