A Mulher que Escreveu Bíblia Moacyr Scliar Em ... - Sua Alteza o Gato
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aguardava por mim. Vesti-me às pressas, despedi-me rapidamente da<br />
família e pronto, no instante seguinte estávamos a caminho, rumo à<br />
capital. Uma longa e difícil jornada, não isenta de perigos: a miséria<br />
dos últimos tempos fizera crescer os assaltos e os ata<strong>que</strong>s de bandos <strong>que</strong><br />
se opunham ao rei.<br />
Eu ia encerrada numa pe<strong>que</strong>na tenda colocada no dorso de um camelo, pois<br />
sendo propriedade do rei ninguém podia me olhar. Teoricamente também não<br />
poderia olhar para nada, mas já no segundo dia cansei da<strong>que</strong>le esplêndido<br />
isolamento e descerrei as cortinas da tenda o suficiente para espiar sem<br />
ser vista. No começo, tudo o <strong>que</strong> eu via era o deserto; uma árida<br />
paisagem <strong>que</strong> me era, no entanto fam¡liar. No deserto eu nascera, no<br />
deserto me criara. O deserto era o meu chão, o meu lar. O lar <strong>que</strong> eu<br />
deixava para trás.<br />
Aos poucos, o cenário foi mudando. Surgiam aldeias cada vez maiores,<br />
povoadas por gente de outras tribos, gente <strong>que</strong> eu não conhecia, vestindo<br />
roupas diferentes - tudo aquilo sendo para mim motivo de surpresa, e<br />
susto. Deus, como era grande o mundo. E como eu estava longe de minha<br />
casa! Então, no quarto dia de jornada, avistei, no caminho, uma figura<br />
conhecida, uma figura <strong>que</strong> fez meu coração bater acelerado: era o<br />
pastorzlnho. Andava com dificuldade, mancando; e, pior, tinha o rosto<br />
deformado pelas pedradas <strong>que</strong> levara. Pobre pastorzinho, a <strong>que</strong> ficara<br />
reduzido pelo impiedoso castigo de meu pai! Tive vontade de chamá-lo, de<br />
convidá-lo a <strong>que</strong> se instalasse comigo na pe<strong>que</strong>na tenda. Na<strong>que</strong>le ambiente<br />
de certo modo aconchegante se estabeleceria entre nós a intimidade <strong>que</strong><br />
durante tanto tempo eu desejara. Conversaríamos muito, trocaríamos<br />
olhares; e <strong>que</strong>m sabe até-<br />
Nem pensar. Eu agora pertencia ao rei, tinha de es<strong>que</strong>cer o <strong>que</strong>rido<br />
pastorzinho. De mais a mais, talvez o rapaz não necessitasse de minha<br />
ajuda. Sim, fora humilhado e espancado e ignominiosamente expulso, mas<br />
em compensa‡ão agora estava livre, podia vagar à vontade pelos caminhos<br />
do mundo, podia namorar quantas moças (ou cabras) quisesse, enquanto eu<br />
estaria para sempre confinada ao palácio real. Nossos caminhos se<br />
separavam: de fato, o camelo sendo mais rápido, logo o trôpego<br />
pastorzinho ficou para trás.<br />
À medida <strong>que</strong> nos aproximávamos do destino, assaltavam-me as dúvidas.<br />
Como seria o palácio? Como seria o harém? E - sobretudo - como seria<br />
a<strong>que</strong>le homem a <strong>que</strong>m em breve pertenceriam meu corpo, minha vida? Eu não<br />
tinha a menor idéia a respeito, mas a ansiedade deixava-me excitada. Era<br />
uma aventura, aquilo <strong>que</strong> eu ia Vlver, uma aventura <strong>que</strong> se renovaria a<br />
cada instante. Daí para diante tudo seria novo, tudo seria gratificante.<br />
Essa sensação se acentuava à medida <strong>que</strong> o caminho ascendia, a medida <strong>que</strong><br />
nos aproximávamos da lendária capital para trás ficavam o deserto, a<br />
solitária montanha; para trás ficava meu passado. À frente estava meu<br />
futuro, dourado futuro. Uma madrugada acordei e lá estava, diante de<br />
meus olhos, Jerusalém, com suas torres, suas muralhas.<br />
- Jerusalém. Desde criança esse nome incendiava minha imaginação.<br />
Sobretudo por<strong>que</strong> eu lá nunca estivera. Meu pai falava de uma grande e<br />
bela cidade, um lugar onde se vivia intensamente. Eu e minhas irmãs<br />
ouvíamos ssas coisas em deslumbrado, e resignado, silêncio. Pouca chance<br />
teríamos de fazer essa viagem quase mítica; a cidade real, a cidade do<br />
Templo, era um lugar para a peregrinação dos homens, não das mulheres.