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A Mulher que Escreveu Bíblia Moacyr Scliar Em ... - Sua Alteza o Gato

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de mim, eram, em sua maioria, belas mulheres; mas, diferentemente de<br />

mim, não sabiam ler nem escrever, não tinham nada a fazer na vida a não<br />

ser aguardar o chamado do rei. Ao fim e ao cabo, porém, éramos todas<br />

mulheres, e uma pergunta eu me fazia ao vê-las no harém ou no pátio,<br />

conversando ou brincando ou cantando: não teria eu ali uma amiga, alguém<br />

<strong>que</strong> pudesse desempenhar, em minha vida, o papel <strong>que</strong> minhas irmãs haviam<br />

tentado em vão assumir, sendo por mim ferozmente repelidas?<br />

No momento em <strong>que</strong> tais dúvidas me ocorriam o relato sofria,<br />

coincidentemente, uma inflexão, uma mudança até para mim inesperada. Já<br />

havíamos deixado para trás Moisés, as pragas do Egito, a travessia do<br />

mar Vermelho, a longa jornada pelo Sinai; Josué já derrubara as muralhas<br />

de Jericó; Canaã fora conquistada depois de ferozes batalhas... Ou seja,<br />

more of the same: muita luta, muito sangue derramado.<br />

Mas de repente surgiram Ruth e Naomi. Foi um verdadeiro cho<strong>que</strong>, algo <strong>que</strong><br />

teve o mágico poder de retirar-me da habitual apatia, de novamente<br />

mobilizar-me a emoção. A história da amizade entre a<strong>que</strong>las duas mulheres,<br />

sogra e nora, judia e moabita, velha e moça, comoveu-me até as lágrimas.<br />

Passei horas pensando nelas, no juramento de fidelidade <strong>que</strong> trocaram. E<br />

então me sentei e trabalhei, e colo<strong>que</strong>i meu coração na<strong>que</strong>le trabalho.<br />

Fiz três versões, até chegar à conclusão de <strong>que</strong> o texto não mais poderia<br />

ser melhorado. Quando finalmente li o trabalho para os anciãos cheguei<br />

até a soluçar. Normalmente eles teriam reagido com irritação - é nisso<br />

<strong>que</strong> dá, botar uma mulher a redigir um texto sagrado, mulheres não têm<br />

objetividade, não sabem se conter -, mas dessa vez guardaram um silêncio<br />

respeitoso e, eu diria, solidário. Sabiam <strong>que</strong> minha emoção nascia de uma<br />

profunda identificação com as duas mulheres.<br />

Nos dias <strong>que</strong> se seguiram pensei muito na história de Ruth e Naomi.<br />

Tratava-se de uma mensagem <strong>que</strong> eu escrevera, não para Salomão, como no<br />

caso de Adão e Eva, mas para mim própria. De repente, ocorria-me <strong>que</strong> não<br />

precisava continuar sozinha; sim, meu real marido me ignorava, a família<br />

estava longe (e ainda <strong>que</strong> estivesse perto, de nada adiantaria), mas eu<br />

poderia buscar amparo em uma amiga. Uma palavra <strong>que</strong> para mim soava nova;<br />

na aldeia, por exemplo, eu nunca chegara a fazer amizade com ninguém: eu<br />

era a feia, a marginal. Uma situação <strong>que</strong> se repetira no harém; mas algo<br />

me dizia <strong>que</strong>, entre todas a<strong>que</strong>las mulheres, alguma devia existir <strong>que</strong> me<br />

compreendesse, <strong>que</strong> fosse para mim uma alma irmã. A companheira <strong>que</strong> eu<br />

precisava encontrar.<br />

E encontrei. Foi numa noite, numa abafada noite da<strong>que</strong>le <strong>que</strong>nte verão. Eu<br />

tentara por várias horas trabalhar no manuscrito. Sem resultado; após a<br />

história de Ruth e Naomi, a narrativa agora me parecia sem interesse,<br />

desprovida de todo sentimento. Exausta, deixei o pergaminho de lado e<br />

fui deitar-me. Mas também não conseguia adormecer, de modo <strong>que</strong> resolvi<br />

sair e espairecer um pouco. Caminhei pelos corredores do palácio, sem<br />

destino, os guardas me observando com curiosidade e desconfiança. Por<br />

fim, cheguei ao jardim do harém.<br />

Uma grande lua iluminava o lugar <strong>que</strong>, à<strong>que</strong>la hora - quase meia-noite -<br />

estava deserto. Mas havia uma mulher, lá sentada. Eu só a conhecia de<br />

vista; sabia <strong>que</strong> era concubina, não esposa. Ao me ver, sorriu.<br />

- Vejo <strong>que</strong> não podes dormir. - Fez uma pausa, e acrescentou: - Como eu.<br />

Há muitos anos, o sono me abandonou. Então venho para cá, pensar um

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