A Mulher que Escreveu Bíblia Moacyr Scliar Em ... - Sua Alteza o Gato
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para a montanha, até então refúgio das cabras <strong>que</strong> escapavam ao rebanho<br />
de meu pai (e, como eu disse, dele próprio, em certas circunstƒncias).<br />
Ao contrário dos eremitas habituais, contudo, <strong>que</strong> apenas <strong>que</strong>rem distƒncia<br />
do resto da humanidade, eu estava em busca de alguma coisa. E quando a<br />
encontrei, logo soube <strong>que</strong> era aquilo o <strong>que</strong> procurava.<br />
Uma pedra. Uma pe<strong>que</strong>na pedra.<br />
Diferente de outras pedras da montanha, a<strong>que</strong>la era lisa, suave ao tato.<br />
Tão lisa <strong>que</strong> chegava a surpreender: <strong>que</strong> erosão tinha domado a aspereza<br />
habitual?<br />
Quem sabe não se tratava de erosão. Quem sabe era o trabalho de algum<br />
misterioso habitante da montanha, um gnomo ou bruxo, <strong>que</strong> polira<br />
pacientemente a antes áspera superfície, pensando, um dia a feia virá à<br />
montanha em desespero e então esta pedra lhe servirá de consolo.<br />
Não sei. O certo é <strong>que</strong> a pedra - pelo tamanho, pelo formato ovóide, e<br />
sobretudo pela lisura - servia perfeitamente para o <strong>que</strong> eu <strong>que</strong>ria. Essa<br />
pedra substituiria o amante <strong>que</strong> eu, feia, nunca teria. Introduzida na<br />
vagina, far-me-ia gozar.<br />
Não deu outra. A partir daí a boa pedra me proporcionou muitos e muitos<br />
momentos de amargo e solitário prazer. Oculto sob outras pedras, essas<br />
de aparência comum, grosseira, o <strong>que</strong>rido calhau aguardava por mim;<br />
impaciente, antecipando o momento de penetração em certa grutinha úmida;<br />
fremindo, sim, de prazer. Quê? Pensais <strong>que</strong> as pedras não sentem?<br />
Enganai-vos, homens e mulheres de pouca fé. As pedras sentem, sim,<br />
sentem muito mais do <strong>que</strong> certos humanos, os de duro coração e os outros.<br />
Só não manifestam seus sentimentos. Não gritam, não choram, não clamam<br />
aos céus. Mas reagem com gratidão à mão <strong>que</strong> as acaricia; armazenam a<br />
ternura como uma bateria armazena energia e depois a devolvem. No meu<br />
caso, no caso da minha <strong>que</strong>rida pedra, generosa devolução, com juros e<br />
correção monetária. Que orgasmos, damas e cavalheiros. Que orgasmos.<br />
Verdadeiros terremotos corpóreos, terminando com um lancinante e mal<br />
contido grito.<br />
Eu podia ter sido feliz assim, desde <strong>que</strong> tivesse renunciado ao mundo e a<br />
seus ardis. Mas não, eu não era imune às tentações. Acabei caindo na<br />
vala comum. Na vala comum dos sentimentos humanos, digo.<br />
Apaixonei-me.<br />
Havia um pastorzinho <strong>que</strong> trabalhava para o meu pai e <strong>que</strong> vivia a<br />
pastorear exatamente ali, nas trilhas da montanha. Todos os dias eu o<br />
avistava. Era um belo rapaz, alto, forte; numa voz muito bonita, entoava<br />
nostálgicas canções <strong>que</strong> falavam de amores impossíveis. Eu nunca lhe dera<br />
importƒncia; em nossa aldeia tinha fama de esquisito. Os outros pastores<br />
debochavam dele, diziam <strong>que</strong> era um fodedor de cabras, o <strong>que</strong> até podia<br />
ser verdade: de alguma forma os solitários precisam apaziguar sua paixão,<br />
cabra ou pedra, tudo serve, quando a fantasia supera a triste realidade.<br />
Fantasia ou não, o certo é <strong>que</strong> o cara me parecia distante. Se havíamos<br />
trocado meia dúzia de palavras até então era muito.<br />
Agora, porém, eu via o pastorzinho num outro cenário. E foi justamente<br />
esse cenário <strong>que</strong> começou a me dar certas idéias... Certas esperanças...