A Mulher que Escreveu Bíblia Moacyr Scliar Em ... - Sua Alteza o Gato
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a sentir, ali no palácio, a presença da<strong>que</strong>la alma - atormentada como a<br />
minha própria. Espiava-me, como espiava Salomão: de trás de uma pilha de<br />
pergaminhos, de sob a mesa onde eu trabalhava. Só <strong>que</strong> não me causava<br />
medo, essa invisível presença. Ao contrário, fascinava-me: tínhamos muito<br />
em comum. Também eu vagava pela vida em busca de meu lugar. Eu também me<br />
sentia escorraçada, marginalizada. A<strong>que</strong>la alma gentil, <strong>que</strong> tão cedo da<br />
vida se partira, a<strong>que</strong>la alma, eu a <strong>que</strong>ria. Se pudesse atraí-la, se<br />
pudesse sugá-la para dentro de mim, se pudesse incorporá-la, enfim...<br />
Duplo ganho, nisso. Primeiro, o prazer de trair Salomão; não se trataria<br />
de prazer carnal, real, o prazer <strong>que</strong> Mikol desfrutara, inclusive e<br />
principalmente com o pastorzinho (onde andaria?), mas um prazer virtual,<br />
talvez até mais requintado. Além disso, eu adquiriria especial poder<br />
sobre Salomão. Ele veria em mim não a esposa número setecentos e um, não<br />
a feia escriba, mas - literalmente - a alma-irmã. No começo se<br />
aproximaria receoso, temendo a atração fatal; mas eu, com autoridade de<br />
<strong>que</strong> agora estaria investida, na condição de portadora da alma do irmão<br />
morto, eu o absolveria, e, como prova disso, consentiria <strong>que</strong> fizesse<br />
amor comigo.<br />
Incorporar a alma penada não seria empreendimento fácil. Para isso teria,<br />
primeiro, de estabelecer contato com o além-túmulo (talvez Mikol, ali<br />
recém-chegada, me ajudasse: alô, alô, Mikol, me acha aí o falecido irmão<br />
de Salomão, <strong>que</strong>ro lhe oferecer o meu corpo como abrigo aqui na Terra;<br />
diz a ele <strong>que</strong> não é uma proposta de jogar fora, tu podes testemunhar <strong>que</strong><br />
sou feia de cara, mas boa de corpo, ele não estará em absoluto mal<br />
servido); depois, precisaria atrair o elusivo espírito, aprisioná-lo<br />
dentro de mim. Como fazê-lo? Correndo nua pelos corredores, na esperança<br />
de captar, pela boca, pelas narinas, pela vagina, o errante ectoplasma?<br />
Complicado, para dizer o mínimo. Como esposa, eu tinha certos direitos,<br />
mas não o de andar pelada. Ah, se ao menos eu pudesse ter a ajuda da<br />
bruxa de Endor. Mas a bruxa morrera há muito tempo e, <strong>que</strong> se soubesse,<br />
não deixara nem sucessores, nem manuais explicativos, nada. O detentor<br />
de toda a sabedoria, a oculta inclusive, era agora justamente Salomão,<br />
<strong>que</strong> nessa empreitada não me ajudaria. De modo <strong>que</strong> eu decidi adiar o<br />
projeto de captura do espectro. Mesmo por<strong>que</strong> o rei não parecia, no<br />
momento, muito preocupado com a lembrança do irmão morto. O palácio todo<br />
vivia um clima de festa. A rainha de Sabá estava chegando; Jerusalém,<br />
toda engalanada, preparava-se para recebê-la. No aposento de Salomão, ao<br />
lado do meu, havia uma cama nova com luxuoso dossel de seda, o <strong>que</strong>,<br />
ominosamente, antecipava muita sacanagem.<br />
Uma manhã eu estava trabalhando quando de repente soaram as trombetas,<br />
dezenas delas. Corri à janela. Uma caravana chegava ao palácio. E <strong>que</strong><br />
caravana era a<strong>que</strong>la! Mais de duzentos camelos, ricamente ajaezados. O<br />
primeiro deles, um animal gigantesco, conduzia uma tenda, semelhante<br />
à<strong>que</strong>la em <strong>que</strong> eu viajara, mas muito maior, muito mais enfeitada - a tenda<br />
da rainha de Sabá. Salomão e a corte já estavam ali, à espera. O camelo<br />
se ajoelhou, as cortinas da tenda se descerraram, e a soberana apareceu.<br />
Que mulher linda, santo Deus. Que mulher linda. Uma negra alta, esbelta,<br />
com um rosto de belíssimos traços, grandes olhos, boca cheia, sensual -<br />
lindíssima. Perto dela as setecentas esposas e as trezentas concubinas<br />
não passavam de tristes espécimes (de mim, nem falar). Os olhares<br />
invejosos <strong>que</strong> eu surpreendia davam testemunho desse constrangedor<br />
contraste. Procuravam algo, esses olhares penetrantes, algum defeito<br />
na<strong>que</strong>le rosto e na<strong>que</strong>le corpo; mas nada achavam, por<strong>que</strong> estávamos diante