A Mulher que Escreveu Bíblia Moacyr Scliar Em ... - Sua Alteza o Gato
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ater à porta: ele era o dono, dono do palácio, da mulher, de tudo.<br />
Agora: se não era Salomão, só podia ser um chato qual<strong>que</strong>r. Levantei-me,<br />
aborrecida, e, lamparina na mão, fui abrir.<br />
Diante de mim estava um ancião, um dos seis gnomos barbudos designados<br />
para guiar-me na elaboração dos textos. Eu não sabia o seu nome; aliás,<br />
não sabia o nome de nenhum deles; para mim eram todos iguais, uns clones<br />
encarquilhados. Por <strong>que</strong> teria a<strong>que</strong>le se desgarrado do grupo? Por <strong>que</strong><br />
estava à minha porta, um sorriso alvar na<strong>que</strong>la cara idiota, gaguejando<br />
desculpas pelo inapropriado da hora?<br />
- Estou aqui por causa do trabalho - disse, mostrando um pergaminho: o<br />
meu pergaminho, o pergaminho no qual eu estivera trabalhando. - O<br />
trabalho <strong>que</strong> o rei nos encomendou, sabes.<br />
Nos encomendou. Já éramos sócios no trabalho. O <strong>que</strong> representava certo<br />
progresso. Pelo jeito, a desconfiança estava dando lugar - ainda <strong>que</strong> em<br />
estranho horário - à parceria.<br />
- Fi<strong>que</strong>i lendo o teu texto até agora - continuou. - Está bom, muito bom.<br />
Mas acho <strong>que</strong> alguns detalhes deveriam ser, como eu diria, discutidos...<br />
A propósito, posso entrar? Sei <strong>que</strong> é tarde, mas o assunto é importante.. .<br />
Agora sim, a coisa estava ficando esquisita. Discutir o texto, à<strong>que</strong>la<br />
hora da noite? Minhas suspeitas cresciam. Achei melhor cortar o papo.<br />
- Não pode ficar para amanhã? Para dizer a verdade, estou meio cansada.<br />
- Por favor - o tom agora era súplice. - É <strong>que</strong> eu... Tenho medo de<br />
es<strong>que</strong>cer... Isto acontece, tu sabes...<br />
Se tinha medo de es<strong>que</strong>cer, por<strong>que</strong> não tomava notas? Pergaminho não lhe<br />
faltava para isso, o esto<strong>que</strong> <strong>que</strong> Salomão tinha colocado à nossa<br />
disposição era praticamente infinito. Definitivamente, a história estava<br />
mal contada. Mas parecia tão desamparado, o homenzinho, <strong>que</strong> acabei<br />
ficando com pena dele:<br />
- Entra, então.<br />
Mais <strong>que</strong> depressa ele transpôs a soleira. E, uma vez dentro, já se sentia<br />
à vontade. Lançou um olhar inquiridor ao redor.<br />
- Não há dúvida, estás bem instalada, aqui... Melhor do <strong>que</strong> nós, bem<br />
melhor. É a vantagem de gozar de certos favores do rei, não é mesmo?<br />
Risadinha <strong>que</strong> pretendia ser cúmplice. Mas cumplicidade em mim não<br />
encontraria. Continuei a olhá-lo, fixo. Sem graça, optou por mudar de<br />
assunto. Exploraria agora o tema dos laços de amizade. Gárrulo:<br />
- Sabes <strong>que</strong> conheço teu pai?<br />
- Verdade?<br />
- Verdade. - Ar triunfante. - Fomos até muito amigos... Ele não deve se<br />
lembrar de mim, mas sempre tive grande admiração por sua energia... <strong>Sua</strong><br />
capacidade de liderança... Grande figura, o teu pai. <strong>Mulher</strong>engo, mas