A Mulher que Escreveu Bíblia Moacyr Scliar Em ... - Sua Alteza o Gato
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Eu olhava o trono, a amargura crescendo dentro de mim. E então, possuída<br />
de súbita raiva, ou de desespero, galguei, num impulso, os degraus. Mas<br />
antes <strong>que</strong> chegasse ao topo, alcançou-me um cortesão <strong>que</strong> dali me arrancou<br />
à força.<br />
- Estás louca, mulher? - gritava, furioso. - Sentar no trono do rei,<br />
estás louca?<br />
Mas era exatamente isso o <strong>que</strong> eu <strong>que</strong>ria, sentar no trono do rei Salomão:<br />
uma bizarra, grotesca e inócua tentativa de ascender ao poder. Não era a<br />
mim própria, contudo, <strong>que</strong> eu <strong>que</strong>ria entronizar, e sim a minha feiúra. Eu<br />
a <strong>que</strong>ria cortejada, homenageada, glorificada. Queria a feiúra dando<br />
ordens, <strong>que</strong>ria a feiúra julgando - cortem-no pelo meio -, <strong>que</strong>ria a feiúra<br />
fazendo preleções, <strong>que</strong>ria a feiúra cagando regras. Queria a feiúra<br />
reinando como reinava Salomão. Queria a feiúra reconhecida, homenageada,<br />
cultuada. Queria a feiúra poderosa a ponto de se tornar beleza.<br />
Mas esse minigolpe era apenas parte de meu objetivo. No fundo eu <strong>que</strong>ria<br />
Salomão, <strong>que</strong>ria o meu homem. E, já <strong>que</strong> não pudera abraçá-lo e beijá-lo,<br />
<strong>que</strong>ria ao menos sentar onde estivera sentado. Queria sentir o restinho<br />
de calor por ele deixado no assento. Queria <strong>que</strong> me penetrasse, a sutil<br />
emanação, <strong>que</strong> me impregnasse, <strong>que</strong> me fecundasse, senão literalmente, ao<br />
menos metaforicamente. Era Salomão, esse calorzinho; era uma parte de<br />
sua aura, a aura mágica <strong>que</strong> se irradiara tão longe <strong>que</strong> chegara a plagas<br />
tão distantes; nessa aura, nessa cálida atmosfera eu <strong>que</strong>ria gravitar<br />
para sempre, nem <strong>que</strong> para tanto tivesse <strong>que</strong> nela dissolver-me.<br />
Renunciaria à minha individualidade, sim, desfar-me-ia em moléculas,<br />
desde <strong>que</strong> tais moléculas, agitadas pelo calor de Salomão, pudessem com<br />
ele em harmonia vibrar.<br />
O cortesão, <strong>que</strong> não estava nem aí para tais complexas aspirações, fez-me<br />
descer a escadaria, entregou-me à encarregada do harém. Sem maiores<br />
cerimônias - à<strong>que</strong>la altura todos ali já estavam vendo <strong>que</strong> eu não era<br />
forte candidata a favorita do rei - a mulher agarrou-me pelo braço e me<br />
levou, ou melhor, arrastou, ao longo de corredores em direção ao<br />
dormitório das esposas. Os guardas abriram as portas.<br />
- Esta é a tua nova morada - anunciou a mulher, não sem certa azeda<br />
ironia. - Aqui passarás o resto dos teus dias.<br />
Era um vasto salão todo ornamentado com cortinados, dosséis e vasos de<br />
flores e iluminado por muitos archotes. Dispostos em fileira, dezenas de<br />
leitos muito confortáveis, numerados de um a setecentos (de novo: notável<br />
organização). As mulheres já estavam todas ali, algumas deitadas, outras<br />
entregues aos cuidados das escravas, várias reunidas em grupos,<br />
conversando. Fez-se silêncio à medida <strong>que</strong> eu, conduzida pela encarregada,<br />
ia avançando pelo vasto recinto. Silêncio hostil, silêncio desdenhoso,<br />
silêncio irônico, silêncio perplexo, à<strong>que</strong>le silêncio eu já estava<br />
habituada. A beleza faz falar, a beleza arranca das pessoas exclamações<br />
entusiastas. A feiúra cala.<br />
Tu vais ficar aqui, disse a encarregada, indicando-me um leito. Olhou-me,<br />
como a esperar alguma reclamação. À<strong>que</strong>la altura eu já tinha optado por<br />
outra estratégia: faria de conta <strong>que</strong> tudo estava ocorrendo conforme o<br />
previsto, <strong>que</strong> eu estava simplesmente ocupando o lugar <strong>que</strong> me cabia como