A Mulher que Escreveu Bíblia Moacyr Scliar Em ... - Sua Alteza o Gato
A Mulher que Escreveu Bíblia Moacyr Scliar Em ... - Sua Alteza o Gato
A Mulher que Escreveu Bíblia Moacyr Scliar Em ... - Sua Alteza o Gato
You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
dramática pausa. E então anunciei o meu veredicto, um veredicto <strong>que</strong> até<br />
a mim causou surpresa, por<strong>que</strong> eu me ouvia falando, e era como se a voz<br />
não fosse minha, como se alguém estivesse falando por minha boca - <strong>que</strong>m?<br />
Não a esposa de Salomão, por certo; talvez a garota <strong>que</strong> corria pelas<br />
veredas da montanha, a<strong>que</strong>la garota <strong>que</strong>, apesar de infeliz, nada temia:<br />
- Que este homem seja posto em liberdade. Que ele guie de volta a rainha<br />
de Sabá.<br />
Minhas palavras desencadearam uma verdadeira tempestade: vaias e aplausos<br />
se misturavam. Para minha surpresa - gratificante surpresa - as mulheres<br />
deliravam de alegria; os cortesãos, pelo contrário, estavam putos da<br />
cara, onde é <strong>que</strong> já se viu, pouca-vergonha, libertar um bandido desses.<br />
A mim não importava: eu tinha me desincumbido da missão - salvando o<br />
pastorzinho <strong>que</strong>, lágrimas nos olhos, mirava-me, agradecido. Desci os<br />
degraus, os leões dessavez sacudindo a cabeça, mas em sinal de franca<br />
aprovação. Juntei-me a Salomão, <strong>que</strong> se limitou a me piscar o real olho.<br />
O chefe da guarda, ainda perplexo, perguntou o <strong>que</strong> deveria fazer com o<br />
prisioneiro.<br />
- Não ouviste a sentença? - disse o rei. - Este homem está livre.<br />
Deixa-o.<br />
Os guardas soltaram-lhe os grilhões <strong>que</strong> prendiam os pés do pastorzinho e<br />
o seu braço íntegro. Alguém me tocou no ombro. Voltei-me: era a rainha<br />
de Sabá <strong>que</strong> <strong>que</strong>ria me cumprimentar pelo julgamento. Confessou <strong>que</strong> não<br />
tinha entendido muito, mas <strong>que</strong> voltaria para sua terra impressionada.<br />
O julgamento concluído, dirigimo-nos todos para a entrada do palácio,<br />
onde a caravana já aguardava, pronta para a partida. Salomão e a rainha<br />
de Sabá despediram-se com muita formalidade, como convinha a governantes;<br />
nada de risinhos e gemidos, nada de sacanagem em versos; tua boca<br />
cubra-me de beijos, nem pensar. Salomão fez uma gentil mesura e foi tudo.<br />
Ela caminhou, graciosa como sempre, em direção ao camelo <strong>que</strong>, ajoelhado<br />
no pátio, esperava-a, ruminando. Entrou na tenda, cujas cortinas se<br />
fecharam. O pastorzinho, por sua vez, assumiu o seu lugar de guia. Passou<br />
por mim, olhou-me; ia falar alguma coisa, não conseguiu; mas o olhar <strong>que</strong><br />
me lançou dizia tudo. <strong>Em</strong> seguida a caravana pôs-se em movimento,<br />
aplaudida pela multidão <strong>que</strong> se concentrava em frente ao palácio, e logo<br />
desapareceu atrás de uma colina.<br />
Nada mais tendo a fazer no quarto destruído, voltei ao harém. Como<br />
esperava, minha antiga cama havia sido ocupada; na<strong>que</strong>les dias, e apesar<br />
de toda a confusão, Salomão tinha casado com mais duas esposas e<br />
comprado três concubinas, estas de um rei qual<strong>que</strong>r semi-arruinado.<br />
Felizmente havia um outro leito, de uma edomita <strong>que</strong> acabava de falecer.<br />
Não era tão bom, por<strong>que</strong> as edomitas, por alguma razão, estavam com seu<br />
prestígio em baixa, mas eu não tinha ânimo para discutir. Ao cair da<br />
noite, deitei-me, exausta.<br />
De um bruto sono, um sono sem sonhos, despertou-me a encarregada do<br />
harém.<br />
- Salomão está te chamando - sussurrou, os olhos brilhando na<br />
semi-escuridão.