A Mulher que Escreveu Bíblia Moacyr Scliar Em ... - Sua Alteza o Gato
A Mulher que Escreveu Bíblia Moacyr Scliar Em ... - Sua Alteza o Gato
A Mulher que Escreveu Bíblia Moacyr Scliar Em ... - Sua Alteza o Gato
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
Templo, para equipar melhor o exército, para comprar concubinas. O ouro<br />
estava em alta, no mercado internacional, e com a<strong>que</strong>la quantidade em<br />
suas burras, Salomão já não teria de buscá-lo nas minas da misteriosa<br />
Ofir, situada ninguém sabia onde: na África, diziam uns, nas tropicais<br />
terras das amazonas, sustentavam outros. Agora: tudo aquilo em troca de<br />
alguns conselhos? Ou estaria ele estabelecendo com a rainha uma nova<br />
aliança, abrangendo Oriente Médio e África, esta considerada como nova e<br />
promissora fronteira?<br />
Fosse como fosse, à<strong>que</strong>la altura a hóspede já estava dando de dez a zero<br />
em qual<strong>que</strong>r das mulheres do harém. Todas juntas, não tinham rendido à<br />
Coroa, em tributos ou em outras vantagens, a metade do <strong>que</strong> ela trouxera.<br />
<strong>Em</strong> beleza, a mesma coisa: todas juntas não chegavam aos pés da fascinante<br />
mulher.<br />
As conseqüências não se fizeram esperar. Salomão simplesmente passou a<br />
ignorar esposas e concubinas - teriam de ficar de quarentena até o<br />
término da visita.<br />
Mas mandou me chamar. Para dizer <strong>que</strong>, como anunciado na recepção aos<br />
visitantes, pretendia presentear a rainha com uma cópia da história <strong>que</strong><br />
eu estava escrevendo. Vários escribas já estavam empenhados em<br />
reproduzir o <strong>que</strong> eu escrevera - mas era necessário também <strong>que</strong> eu<br />
concluísse a descrição do reinado de Davi e chegasse ao próprio Salomão.<br />
Ali figuraria a descrição da visita da rainha, mencionando os quatro mil<br />
quilos de ouro e tudo o mais. Esse seria o capítulo final, o fecho de<br />
ouro (ouro metafórico, claro; o verdadeiro já estava no tesouro real) da<br />
narrativa. Que apressasse, portanto, a marcha dos trabalhos.<br />
Eu não disse nada. O <strong>que</strong> poderia dizer? Estava encarregada de uma tarefa,<br />
tinha de cumpri-la. Os prazeres, esses ficavam reservados à rainha de<br />
Sabá. Que era linda. Que tinha oferecido quatro mil quilos de ouro ao<br />
rei. Eu não tinha do <strong>que</strong> reclamar. Voltei, portanto, ao manuscrito.<br />
Estava às voltas com o meu trabalho quando bateram à porta. Era uma<br />
escrava. Trazia um recado das mulheres: <strong>que</strong>riam <strong>que</strong> eu fosse ao harém<br />
conversar com elas. O assunto, não sabia dizer. Mas tratava-se de coisa<br />
urgente.<br />
Não precisei pensar muito para chegar à conclusão de <strong>que</strong> o pedido tinha<br />
a ver com a visita da rainha. Mais: certamente era algo sério; alguma<br />
crise estava para explodir. Apesar de estar lutando contra o relógio - a<br />
história de Davi se revelava complicada -, dei um jeito e fui até lá.<br />
Como antecipara, encontrei-as em pé de guerra, revoltadíssimas com o <strong>que</strong><br />
chamavam de desprezo de Salomão. Desde <strong>que</strong> a negra chegou, dizia uma,<br />
não temos mais vez. Outra acrescentava: esse rei não é sábio coisa<br />
nenhuma, ele se deixa enganar por qual<strong>que</strong>r forasteira <strong>que</strong> apareça. Havia<br />
até <strong>que</strong>m falasse em bruxaria, tal prática sendo comum na África: um<br />
filtro amoroso qual<strong>que</strong>r colocado disfarçadamente no vinho de Salomão e<br />
pronto, lá estava o idiota, babando de paixão.<br />
Depois de discutir muito, haviam decidido desencadear um movimento de<br />
protesto e <strong>que</strong>riam <strong>que</strong> eu assumisse o comando; afinal, tendo certa<br />
ascendência sobre o rei (ao menos assim o imaginavam), poderia levar-lhe<br />
as reivindicações do harém.