A Mulher que Escreveu Bíblia Moacyr Scliar Em ... - Sua Alteza o Gato
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dias antes me expulsara de seus aposentos? O rei, <strong>que</strong> me recusara de<br />
forma tão cabal e irritada? O <strong>que</strong> <strong>que</strong>reria o rei comigo? Confusa, eu não<br />
sabia o <strong>que</strong> pensar. Teria Salomão optado por cumprir, afinal, as suas<br />
obrigações? Talvez: sua confiabilidade como monarca, os futuros tratados<br />
<strong>que</strong> ainda teria de celebrar, dependiam em boa parte de seu desempenho<br />
marital. Quem sabe tinha tomado precauções contra o risco de um novo<br />
fracasso. Exemplo: afrodisíaco. Exemplo: orgia - no decurso da qual,<br />
excitado com outras mulheres, aproveitaria o embalo para me traçar de<br />
qual<strong>que</strong>r maneira.<br />
Havia uma segunda possibilidade, mas esta remetia direto ao milagre:<br />
teria ele subitamente se dado conta de <strong>que</strong> seu sentimento por mim era,<br />
na verdade, amor? Estaria me chamando para dizer isso, <strong>que</strong> a lembrança<br />
de minhas mãos, ou de meu corpo (mas não da cara), funcionara nele como<br />
um mágico filtro da paixão, ainda <strong>que</strong> de efeito retardado?<br />
E havia, por fim, uma terceira possibilidade, sombria, mas não i<br />
ncompatível com o maquiavelismo da realeza. Teria Salomão confiado a<br />
tarefa de meu defloramento a um tertius, por ele comissionado, e <strong>que</strong><br />
desempenharia sua missão como segredo de Estado? Hipótese humilhante,<br />
mas eu até aceitaria um marido vicariante, transitório, desde <strong>que</strong> fosse<br />
substituído, no devido tempo, pelo <strong>que</strong>rido Salomão. O sacrifício teria<br />
então valido a pena.<br />
<strong>Em</strong> qual<strong>que</strong>r dos casos, uma coisa era certa: eu me precipitara ao enviar<br />
a carta a meu pai, assim como me precipitara ao pedir o auxílio postal<br />
do pastorzinho. O pior é <strong>que</strong> o rapaz já estava a caminho, ansioso por<br />
desempenhar sua missão, a missão <strong>que</strong>, imaginava, o reconciliaria com<br />
meu pai. Eu precisava detê-lo; mas como? Correndo atrás dele? Não, isso<br />
eu não podia fazer, e de todo jeito seria inútil, eu jamais o alcançaria.<br />
O melhor mesmo era ir, de imediato, ao rei. Tudo resultando da maneira<br />
mais desejável (ou seja, ocorrendo uma fogosa relação com ele ou com<br />
alguém por ele designado), eu lhe contaria o sucedido, pediria <strong>que</strong> me<br />
perdoasse e me ajudasse a evitar o catastrófico ata<strong>que</strong> de meu pai. Sábio<br />
como era, Salomão me compreenderia. Mandaria seus velozes cavaleiros<br />
atrás do pastorzinho; a mensagem seria recuperada, o pastorzinho<br />
receberia muitas cabras como recompensa; tudo terminaria bem, e seríamos<br />
felizes para sempre.<br />
Com essa maravilhosa perspectiva em vista, vesti-me rapidamente e<br />
ordenei <strong>que</strong> a maquiadora comparecesse com urgência.<br />
- Não é preciso - atalhou a encarregada. - Hoje não será preciso.<br />
- Como, não será preciso? - Eu, perplexa. - Mas o rei...<br />
- O rei disse <strong>que</strong> não é preciso. Vamos logo, ele está te esperando.<br />
De novo, a marcha por longos e sombrios corredores - mas, surpresa, não<br />
em direção aos aposentos reais. <strong>Em</strong> vez disso, fomos para a sala do trono,<br />
o <strong>que</strong> de imediato me deixou intrigada - e preocupada. Por <strong>que</strong> viemos<br />
para cá, perguntei à encarregada do harém. Já verás, replicou. Deixou-me<br />
à porta do recinto e se foi.<br />
Dois cortesãos me fizeram entrar. Ali estava o rei, sentado no trono. Ao<br />
vê-lo, quase desfaleci: tinha um pergaminho na mão. O meu pergaminho. A