A Mulher que Escreveu Bíblia Moacyr Scliar Em ... - Sua Alteza o Gato
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Limitei-me, pois, a dizer <strong>que</strong> também gostava dele, <strong>que</strong> sempre o lembraria<br />
com carinho, e saltei para o chão. Bem na hora: a encarregada do harém<br />
chegava na<strong>que</strong>le momento, para sua inspeção habitual.<br />
- O <strong>que</strong> estás fazendo aí? - perguntou, intrigada, suspeitosa: eu agora<br />
era uma pessoa <strong>que</strong> precisava ser vigiada, e vigiada de perto.<br />
Desconversei, falei alguma coisa sobre espairecer no jardim. Olhou-me<br />
ainda desconfiada - o <strong>que</strong> será <strong>que</strong> a feia está aprontando, deixou o rei<br />
broxa, sublevou as mulheres e, como se isso não bastasse, <strong>que</strong>r mais<br />
confusão ainda -, mas se afastou sem nada dizer.<br />
Bom. A <strong>que</strong>stão do mensageiro estava resolvida. Precisava agora escrever<br />
a carta. Mas onde arranjar o material necessário? Não seria fácil; só os<br />
escribas podiam usá-lo. Raramente eram vistos: trabalhavam isolados,<br />
numa sala fechada a <strong>que</strong> só o rei tinha acesso. Mesmo <strong>que</strong> eu conseguisse<br />
falar com eles, não teria como lhes pedir um pergaminho - seria estranho,<br />
para dizer o mínimo; chamaria a atenção. E chamar a atenção era a última<br />
coisa <strong>que</strong> eu <strong>que</strong>ria.<br />
Não havendo outro jeito, tive de recorrer ao suborno. Com o único objeto<br />
de valor <strong>que</strong> tinha, um pe<strong>que</strong>no bracelete de ouro e marfim (presente de<br />
minha mãe, não de Salomão, <strong>que</strong> não dava presentes a nenhuma de suas<br />
esposas ou concubinas. Não <strong>que</strong>ro mostrar preferências por ninguém,<br />
explicava. Sabedoria ou avareza, a<strong>que</strong>la era a regra), comprei um dos<br />
guardas, e ele me arranjou pergaminho, o cálamo, a tinta. Uma noite, à<br />
luz da lua, enquanto todas dormiam, escrevi a carta ao pai.<br />
E <strong>que</strong> carta foi a<strong>que</strong>la. Que carta. Eu estava inspirada. Não me restringi<br />
aos acontecimentos recentes. Recuei no tempo: a rejeição de <strong>que</strong> eu fora<br />
vítima por parte de Salomão não era um incidente isolado; ao contrário,<br />
fazia parte de minha história natural como feia e rejeitada criatura.<br />
Era o esperado resultado da problemática relação entre um pai<br />
autoritário, distante, e uma filha sensível e amargurada. Falei das<br />
angústias e das aspirações dessa moça, da esperança por ela depositada<br />
no afeto do homem a <strong>que</strong>m tinha sido destinada como esposa. Descrevi em<br />
termos candentes a humilhação pela qual tinha passado, e <strong>que</strong> se estendia<br />
à família, comprometendo a árvore genealógica inteira, até a ponta do<br />
menor galho. Finalizei pedindo a meu pai, em nome de nossos antepassados,<br />
<strong>que</strong> me ajudasse. Depois dessa longa e eloqüente introdução, entrei nos<br />
detalhes práticos, explicando com minúcias o <strong>que</strong> teria de fazer para<br />
entrar no palácio e seqüestrar o rei.<br />
Terminei a carta no dia mesmo em <strong>que</strong> o pastorzinho devia passar pelo<br />
palácio. Ele cumpriu a promessa. À hora combinada, ouvi o som de sua<br />
flauta. Corri para o jardim, arremessei o pergaminho por cima do muro.<br />
A sorte estava lançada. Pela primeira vez em muito tempo, rezei: pedi a<br />
Jeová <strong>que</strong> me ajudasse, <strong>que</strong> fizesse a mensagem chegar a seu destino.<br />
Senti-me então calma, consolada; fizera o <strong>que</strong> tinha de ser feito. Agora,<br />
era só esperar.E aí, uma surpresa.<br />
No início da noite, a encarregada do harém veio me procurar.<br />
- O rei mandou te chamar.<br />
Eu não acreditava em meus ouvidos. O rei, me chamando? O rei, <strong>que</strong> poucos