A Mulher que Escreveu Bíblia Moacyr Scliar Em ... - Sua Alteza o Gato
A Mulher que Escreveu Bíblia Moacyr Scliar Em ... - Sua Alteza o Gato
A Mulher que Escreveu Bíblia Moacyr Scliar Em ... - Sua Alteza o Gato
You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
não sabia ao certo o <strong>que</strong> o pastorzinho planejava, mas sabia <strong>que</strong><br />
resultaria em desastre - para ele, provavelmente. Só o seu fanatismo o<br />
levara a pensar <strong>que</strong> podia entrar no palácio e matar o rei. A chance <strong>que</strong><br />
tinha de ferir Salomão era mínima; antes <strong>que</strong> tentasse qual<strong>que</strong>r coisa, os<br />
guardas o fariam em pedaços. De qual<strong>que</strong>r modo, havia risco - para ele,<br />
ou, mais remotamente, para o monarca.<br />
Só havia uma maneira de evitar a tragédia. Eu tinha de avisar Salomão.<br />
Um problema, na<strong>que</strong>les dias: ninguém sabia ao certo onde ele andava,<br />
acompanhado da rainha. Corri até a sala do trono, na esperança de <strong>que</strong><br />
estivesse lá, despachando. Não, não estava. Fui a seus vários quartos:<br />
também não estava.<br />
Restava um lugar: os aposentos reservados à rainha de Sabá. Corri para<br />
lá. Sim, disseram os guardas <strong>que</strong> estavam à porta e <strong>que</strong> de imediato me<br />
barraram o caminho, Salomão estava ali, mas não <strong>que</strong>ria ser importunado.<br />
Nervosa, expli<strong>que</strong>i <strong>que</strong> era coisa urgente, assunto de segurança.<br />
Argumentei, implorei - inútil. O rei não pode ser interrompido, repetiam,<br />
são as ordens <strong>que</strong> temos.<br />
Aquilo me deu muita raiva - o rei fodendo, sem dar bola para nada, nem<br />
mesmo para o risco <strong>que</strong> estava correndo - mas eu não desistiria.<br />
Lembrei-me da parede, da parede através da qual eu ouvia as conversas<br />
dos dois. Se eu os escutava, na certa seria escutada também. Fui para o<br />
meu quarto, colei o ouvido na dita parede. Sim, lá estavam os dois, e<br />
era a<strong>que</strong>la coisa de risinhos e gemidos e a sacanagem em versos: tua boca<br />
cubra-me de beijos, teu ventre é como uma taça, o negócio <strong>que</strong> eu já<br />
conhecia de cor e salteado.<br />
- Salomão! - chamei, através da parede. - Salomão, abre a porta, tenho<br />
algo a te contar, algo muito urgente!<br />
Nenhuma resposta.<br />
- Salomão! Teu trono está ameaçado!<br />
Trono ameaçado? Pelo visto, ele não pararia de trepar por tão pouco. Que<br />
fosse para o diabo, o trono, foder era muito melhor.<br />
- Salomão, tua vida corre perigo!<br />
Nada. Perdi a paciência.<br />
- Salomão! Porra, Salomão, será <strong>que</strong> não dá para parar de trepar e para<br />
prestar atenção em uma coisa séria? Onde é <strong>que</strong> está tua sabedoria,<br />
calhorda?<br />
O silêncio do outro lado era agora absoluto. Mas eu podia imaginar<br />
Salomão sussurrando ao ouvido da rainha: não liga, é a<strong>que</strong>la feia, a<br />
mulher não sabe mais o <strong>que</strong> vai fazer para me encher o saco, só por<strong>que</strong><br />
não quis fazer amor com ela, agora me inferniza a vida. Enfurecida,<br />
peguei um candelabro, um pesado candelabro de bronze e pus-me a golpear<br />
a parede, as batidas retumbando no aposento. Nada. E aí chorei,<br />
desmanchei-me em lágrimas. Tão estúpido era a<strong>que</strong>le Salomão <strong>que</strong> pagaria<br />
com a vida a sua incontrolável tesão. E eu nada podia fazer.