déchets. stigmatisations, commerces, politiques ... - Viva Rio en Haiti

92 | LIXO
3. OS PRINCÍPIOS QUE ORGANIZAM
A DISTRIBUIÇÃO DESIGUAL DO ESTIGMA
ASSOCIADO À SUJEIRA
A estigmatização do território e das pessoas
não é homogênea, não cobre por igual toda a região
e todos os moradores; ela depende do ponto
de vista e da posição do sujeito. Assim, por exemplo,
para os moradores de Pétion Ville, Bel Air e Cité
Soleil são bairros sujos e violentos; para os moradores
das regiões altas de Bel Air a sujeira está
na parte baixa da cidade, em La Saline; para quem
mora na parte central de Cité Soleil, a sujeira está
em Fort Dimanche ou, principalmente, em Truitier;
por fi m, para quem mora nas redondezas de
Pont Rouge, verdadeiramente sujo é quem reside
em Fort Dimanche. 10
A estigmatização depende fundamentalmente
de apreciações a respeito da proximidade com
o lixo. Quanto mais próximos, mais estigmatizados
são o território e as pessoas ali residentes. Casos
extremos são os kokorats e os bayakous (fi guras
sobre as quais voltaremos em seguida), os verdadeiros
“intocáveis” desse mundo social: os primeiros
são catadores de lixo, os segundos, limpadores
de latrinas.
Como dissemos, o trabalho de campo concentrou-se
sobre uma população que vive em grande
proximidade com o lixo. Mas, ao contrário do
que veiculam as visões homogeneizantes construídas
de fora, a observação etnográfi ca, de perto,
mostra um universo de diferenças. Identifi camos
os seguintes princípios que organizam essas diferenças:
(a) de ordem ecológica, como a proximidade
com o mar, com os canais por onde desce o lixo
(principalmente inorgânico) ou com os mercados
(grandes produtores de lixo orgânico);
(b) históricos e geracionais, associados às formas
e aos ritmos específi cos de ocupação dos espaços;
(c) infraestrutura, tanto no que diz respeito à
qualidade e ao regime de posse das moradias ou
ateliês (propriedade, ocupação, aluguel, entre outras),
quanto ao acesso a serviços como água ou
latrinas que, por sua vez, podem ser “residenciais”
(gratuitos) ou “comerciais” (pagos); e
(d) oportunidades para desenvolver atividades
que possibilitem a obtenção de dinheiro, como
as que se verifi cam nas vias de maior circula-
ção ou nas áreas mais próximas aos mercados –
mais vantajosas do ponto de vista do comércio –
e aos canais onde se concentram ateliês, como os
de produção de panelas de alumínio que utilizam
lixo como matéria-prima e combustível. 11
Tais princípios podem ser reconhecidos em
toda a área, apresentando combinações locais singulares
que, por sua vez, permitem identifi car seis
microrregiões que descrevemos a seguir de forma
sumária. É importante entender que elas não
correspondem a divisões administrativas nem a
critérios consistentes estatisticamente; 12 trata-se
de um instrumento construído etnografi camente
e que visa colocar em evidência como os princípios
acima mencionados se articulam localmente,
em confi gurações territoriais muito específi cas. A
descrição dessas microrregiões, às quais voltaremos
várias vezes ao longo do texto, também permite
apresentar mais adequadamente o cenário da
pesquisa (ver mapas das micro-regiões).
1. Essa primeira microrregião é a mais próxima
do mar e a mais degradada. Sub-divide-se, por
sua vez, em duas áreas: Warf Jeremie, que ainda
faz parte do município de Porto Príncipe, e Fort Dimanche,
que já integra a comuna de Cité Soleil. A
particularidade da primeira é o fato de estar orientada
para um pequeno, porém bastante ativo, porto
de cabotagem que faz a ligação com o sudoeste
do país – principalmente com a vila de Jeremie,
capital do Departamento de Grand’Anse. Trafegam
intensamente nessa rota embarcações precárias
levando mercadores e mercadorias. De Porto
Príncipe (particularmente dos atacadistas sediados
em Croix de Bossales), saem alimentos, roupas,
gelo e outros bens; do sul, chega principalmente
carvão vegetal que, como se sabe, é a principal
fonte de energia utilizada no Haiti. No local,
encontram-se dezenas de depósitos de atacadistas
de carvão junto aos de sal, farinha e outros bens.
Somado a isto, o pequeno mercado à beira mar e a
área das moradias do bairro de Warf Jeremie. (fotos
2 e 3) Na parte oeste, a área limite com o canal
Rockefeller. Na outra margem do canal começa a
área de Fort Dimanche. Às características de degradação
da zona residencial de Warf Jeremie, em
Fort Dimanche, acrescentam-se ainda a proximidade
com o canal Delmas e, principalmente, o fato
de que a área se localiza abaixo do nível do mar, o
que ocasiona frequentes enchentes quando a maré
alta coincide com fortes chuvas. Fort Dimanche
é a região de população mais recente em toda