déchets. stigmatisations, commerces, politiques ... - Viva Rio en Haiti
déchets. stigmatisations, commerces, politiques ... - Viva Rio en Haiti
déchets. stigmatisations, commerces, politiques ... - Viva Rio en Haiti
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
paço doméstico, como substituto do carvão vegetal<br />
no cozim<strong>en</strong>to dos alim<strong>en</strong>tos. Esse é um dos aspectos<br />
no qual a difer<strong>en</strong>ciação social se apres<strong>en</strong>ta<br />
de forma mais dramática d<strong>en</strong>tro da área pesquisada.<br />
Como dissemos: o que para olhos externos<br />
aparece como uma região homog<strong>en</strong>eam<strong>en</strong>te pobre<br />
e degradada é, na verdade, uma área int<strong>en</strong>sam<strong>en</strong>te<br />
difer<strong>en</strong>ciada. Utilizar plástico (catado, não comprado)<br />
em lugar de carvão é um dos traços característicos<br />
da microrregião 1, o que permite caracterizá-la<br />
como uma microrregião de “extrema pobreza”<br />
d<strong>en</strong>tro da zona da pesquisa que, certam<strong>en</strong>te,<br />
é como um todo “extremam<strong>en</strong>te pobre”.<br />
6. KOKORAT – VANDÈ PA PÈZ<br />
O termo kokorat designa uma espécie de pulga<br />
ou parasita que vive nas galinhas ou nos ratos.<br />
22 A palavra invoca basicam<strong>en</strong>te a ideia de “ser<br />
inferior” e é utilizada para d<strong>en</strong>ominar os catadores<br />
de lixo. Não se trata de uma categoria de autoid<strong>en</strong>tifi<br />
cação (raram<strong>en</strong>te alguém diz “eu sou um kokorat”).<br />
A palavra que descreve a atividade positivam<strong>en</strong>te<br />
é vandè pa pèz (v<strong>en</strong>dedor por peso).<br />
Como já adiantamos, existem “catadores profi<br />
ssionais” que dedicam boa parte de sua jornada<br />
a essa atividade. Há os que trabalham diretam<strong>en</strong>te<br />
no principal lixão da zona metropolitana (Truitier).<br />
Há ainda os que começam a catar lixo já nos<br />
caminhões que para lá se dirigem. E há catadores<br />
nos lixões localizados na área da pesquisa, principalm<strong>en</strong>te<br />
nas microrregiões 1 e 5, nos dois canais<br />
que descem das zonas altas e mais ricas da cida-<br />
20 As primeiras descrições etnográfi cas das relações<br />
de cli<strong>en</strong>tela nos mercados haitianos, fundadas na<br />
confi ança e cultivadas ao longo do tempo (como a de<br />
Sidney Mintz, “Pratik: <strong>Haiti</strong>an Personal Economic Relationship”,<br />
1967), têm pl<strong>en</strong>a validade nesses circuitos<br />
comerciais urbanos ligados ao lixo.<br />
21 O mercado do plástico é bem m<strong>en</strong>or e m<strong>en</strong>os r<strong>en</strong>tável<br />
que o dos metais. Essa é a razão pela qual não há<br />
balanças para pesagem e compra de plásticos nas ruas,<br />
nem grandes intermediários, como acontece com o<br />
ferro e o alumínio.<br />
22 Ver Jean Jorel Janvier, « Port-au-Prince et les <strong>en</strong>fants<br />
de rue : le ph<strong>en</strong>omène des kokorats ». Thesis, Faculé<br />
d’Ethnologie, Université d’Etat d’Haïti, 2004.<br />
de. A atividade dos kokorats é mais int<strong>en</strong>sa bem<br />
cedo, na madrugada (é preciso ser o primeiro a pegar<br />
os objetos v<strong>en</strong>dáveis) e, após os dias ou períodos<br />
de chuva, quando as águas descem com mais<br />
objetos e de melhor qualidade (“jogados pelos ricos”<br />
que moram em Pétion Ville ou Delmas) (fotos<br />
27, 28 e 29). Alguns catadores trabalham em grupos,<br />
em algumas ocasiões, sob a forma de redes<br />
familiares, formadas, por exemplo, por uma mãe<br />
e seus fi lhos. Nesses casos, a quantidade de objetos<br />
colhidos numa jornada pode justifi car o transporte<br />
direto aos pontos fi nais de compra: alguns<br />
ateliês e a empresa GS, situada a vários quilômetros<br />
da região, para onde os objetos são levados<br />
em carros de mão alugados. O puxador pode ser<br />
alguém da família ou, às vezes, outra pessoa que<br />
é paga pelo serviço.<br />
Isto demonstra, uma vez mais, até que ponto<br />
o mundo da extrema pobreza é bastante difer<strong>en</strong>ciado,<br />
e os pequ<strong>en</strong>os lucros gerados, perman<strong>en</strong>tem<strong>en</strong>te<br />
sub-divididos, numa d<strong>en</strong>sa rede de intermediários<br />
e colaboradores. Trata-se de um traço<br />
c<strong>en</strong>tral das atividades id<strong>en</strong>tifi cadas com o que se<br />
conv<strong>en</strong>cionou chamar de “economia informal”: um<br />
conjunto de possibilidades abertas, não exclud<strong>en</strong>tes<br />
<strong>en</strong>tre si e que, de forma articulada, permite a<br />
sobrevivência das pessoas num mundo pouco monetizado.<br />
Esse universo, no qual o dinheiro oriundo<br />
de salários é quase inexist<strong>en</strong>te, é marcado pela<br />
produção de “pequ<strong>en</strong>os lucros” (fè piti, na expressão<br />
em kreyòl), como aqueles surgidos da colheita,<br />
transformação e v<strong>en</strong>da de objetos que, em outros<br />
contextos, são tratados como “lixo”. 23<br />
23 No texto clássico que consagrou a noção de economia<br />
informal (“Informal Income Opportunities and Urban<br />
Employm<strong>en</strong>t in Ghana”. The Journal of Modern<br />
African Studies 11, 1 1973: 61-89), Keith Hart não fala<br />
da lógica dos pequ<strong>en</strong>os lucros. O mérito de chamar<br />
a at<strong>en</strong>ção sobre ela é de Jane Guyer, Marginal Gains.<br />
Monetary Transactions in Atlantic Africa. University<br />
of Chicago Press, 2004. Cabe sublinhar que as estimativas<br />
sobre desemprego (algumas falam em até 80% na<br />
região de pesquisa) têm grande difi culdade para conceituar<br />
e m<strong>en</strong>surar as atividades que geram pequ<strong>en</strong>os<br />
lucros como as aqui descritas.<br />
LIXO | 97