A CONDESSA VÃSPER Aluà sio Azevedo - Bibliotecadigital.puc ...
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caía-lhe negligentemente ao comprido do corpo, e o outro se estendia para<br />
fora da cama, com a mão aberta na posição de pedir esmola.<br />
Laura contemplava tudo isso, como se tivesse defronte dos olhos uma<br />
bela obra de arte Via atentamente a cor e a forma, parava, embevecida, a<br />
considerar os pequeninos detalhes, e teria ímpeto de reproduzir, na tela ou no<br />
barro, aquele modelo, se na sua pobre educação houvesse entrado a pintura<br />
ou a estatuária.<br />
Depois de longo contemplar, não resistiu ao desejo de corrigir: Puxou<br />
mais para o ombro a cabeleira de Ambrosina, chamou-lhe o braço direito para<br />
o colo, endireitou as dobras da camisa e dos lençóis; e então afastou-se um<br />
pouco e mirou-a, cada vez mais embevecida, com os olhos apertados e a<br />
cabeça vergada, como uma artista que se revê na sua obra. Não se podia<br />
furtar à poética impressão que lhe causava a amante de Gabriel. Seu pai já lhe<br />
havia falado nela, mas da vida de Ambrosina, Laura só conhecia as<br />
exterioridades, que todavia nenhum valor teriam a seus olhos sem o concurso<br />
da paixão de Gabriel, que lhes dava um forte gosto de romance, ligeiramente<br />
apimentado pelo trágico elemento da sanha do marido louco. Ambrosina havia<br />
se imposto ao seu espírito e ao seu coração pelos mesmos processos que<br />
Bonaparte, com a diferença, porém, de que este tanto mais avultava quanto<br />
mais longe se perdia nas sombras do desconhecido, ao passo que a outra<br />
crescia agora de súbito com a sua aproximação.<br />
Quantas vezes, depois de enervante leitura de algum livro sobre o<br />
legendário aventureiro, não ficava a pobre sonhadora tomada na sua<br />
obscuridade por um sentimento desconhecido e indefinível que a arrebatava<br />
para o mundo fantástico das glórias?... Nessas ocasiões, aproveitando o cair do<br />
sol, ia ela assentar-se à beira do mar, defronte da casa, com o livro esquecido<br />
entre os dedos.<br />
Aí permanecia horas mortas, a olhar abstratamente para o segredo<br />
murmuroso das águas, alheia inteiramente a tudo que a cercava, e presa de<br />
um sofrimento ao mesmo tempo amargo e doce, que a fazia chorar.<br />
Qual era a dor que se apoderava da mísera criança? Ela mesma não o<br />
sabia dizer. Sentia que o coração lhe soluçava, sentia que de dentro lhe<br />
partiam reclamos e aspirações desejava e queria, mas não podia dizer o quê!<br />
Em sua imaginação havia-se formado um mundo de quimeras, com uma<br />
existência de dores e prazeres ideais, mas tudo vaporoso, fugitivo, confuso<br />
como um sonho.<br />
E Napoleão representava sempre o principal herói dos seus enlevos.<br />
Variavam as circunstâncias, variava o cenário, mas o vulto misterioso do<br />
Cativo de Santa Helena estava, embrulhado no seu capote de batalha, o ar<br />
profundamente frio, o gesto pavoroso, o olhar cheio de predestinações.<br />
E, o que é mais estranho, Laura, no capricho dos seus arroubos, achava<br />
sempre meio de reunir e conciliar os personagens, os fatos e os lugares mais<br />
incongruentes e desencontrados.<br />
Lera a "Graziela" de Lamartine, e o sentimento de tristeza que a<br />
arrebatou com semelhante leitura, bem longe de possuir a ingênua melancolia<br />
da procitana apaixonada, levou-a a edificar um dos castelos do seu mundo<br />
fantástico nos rochedos de Ischia. E aí mesmo, nesse castelo suspiroso e<br />
poético, o encapotado Cativo de Santa Helena penetrou despoticamente para<br />
tomar o melhor lugar.<br />
Um dia, depois de reler aquela obra, Laura encostou-se à janela, olhando<br />
vagamente para as águas.<br />
Um italiano, que para à rua com o seu realejo, principia a moer a<br />
"Marselhesa". A tarde precipitava-se no crepúsculo, e enchia a natureza de<br />
tons melancólicos e doloridos.<br />
Laura conhecia algumas passagens da revolução francesa, narradas<br />
enfaticamente pelo autor de "Graziela", na "História dos Girondinhos". E aquela<br />
pobre música, arrancada de um realejo por um mendigo, foi o bastante para<br />
arrastá-la ao seu mundo fantástico. E então, sob o poderoso domínio do<br />
sentimentalismo retórico da Marselhesa, a infeliz caiu vítima de uma crise<br />
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