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A Etica Protestante E o Espirit - Max Weber

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verdadeiros conversos desejava assim — traço comum a todo pietismo em<br />

sentido específico — saborear já neste mundo, em ascese intensificada, a<br />

comunhão com Deus em sua bem-aventurança. Ora bem, esta última pretensão<br />

tinha íntimo parentesco com a unio mystica luterana e muitas vezes levava a um<br />

cultivo do lado sentimental da religião mais pronunciado do que na média do<br />

cristianismo reformado. É possível então apontar, até onde chega nosso ponto de<br />

vista, que essa era a marca decisiva do “pietismo” no campo calvinista. Pois o<br />

fator sentimento, originalmente estranho à piedade calvinista como um todo,<br />

porém intimamente aparentado com certas formas da religiosidade medieval,<br />

desviava a religiosidade prática para os trilhos do gozo da bem-aventurança<br />

eterna já neste mundo, em detrimento da luta ascética com vistas a ter certeza<br />

quanto ao futuro no Outro Mundo. E esse sentimento podia intensificar-se a tal<br />

ponto que a religiosidade assumia um caráter francamente histérico e produzia<br />

então, conforme mostram inúmeros exemplos, uma alternância de fundo<br />

psicológico [neuropático] entre estados semiconscientes de êxtase religioso e<br />

períodos de letargia nervosa ressentidos como “afastamento de Deus”, cujo efeito<br />

era exatamente o inverso daquela disciplina sóbria e rigorosa na qual a vida santa<br />

sistematizada do puritano capturava o indivíduo: um enfraquecimento daquelas<br />

“inibições” que escudavam a personalidade racional do calvinista contra os<br />

“afetos”. 115 Do mesmo modo, a ideia calvinista de danação da criatura, transposta<br />

em forma de sentimento — por exemplo, o chamado “Wurmgefühl”<br />

{“sentimento de ser um verme”} —, podia dar em esgotamento da energia na<br />

vida profissional. 116 E a ideia de predestinação podia, por sua vez, converter-se<br />

em fatalismo, quando — ao arrepio das genuínas tendências da religiosidade<br />

calvinista racional — se tornava um objeto de apropriação por estados de<br />

espírito e sentimentos. 117 E finalmente, a propensão a isolar os santos do mundo,<br />

se sofresse forte intensificação de cunho sentimental, podia levar à formação de<br />

uma espécie de comunidade conventual de caráter semicomunista, conforme<br />

demonstrado recorrentemente pelo pietismo, mesmo dentro da Igreja<br />

reformada. 118 Mas enquanto não se chegava a esse extremo provocado pelo<br />

cultivo do fator sentimento, vale dizer, enquanto os pietistas reformados ainda<br />

buscavam certificar-se de sua salvação no interior da vida profissional mundana,<br />

o efeito prático dos princípios pietistas resumia-se pura e simplesmente a um<br />

controle ascético ainda mais estrito da conduta de vida na profissão, com um<br />

embasamento religioso da moralidade profissional ainda mais firme do que o<br />

desenvolvido pela simples “honestidade” mundana dos cristãos calvinistas<br />

normais, que a “elite” pietista via como um cristianismo de segunda ordem. A

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