José Osvaldo De Meira Penna
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tirou de suas cogitações poéticas, fizeram furor, sendo por isso acusado de<br />
imoralidade, cinismo e ateísmo. Era certamente um cético e usou o sarcasmo para<br />
transmitir suas brilhantes intuições.<br />
O socialista Tawney e todos os românticos de esquerda iriam considerar o<br />
médico holandês um imoral detestável por haver oferecido, como subtítulo de sua<br />
obra, a sentença "vícios privados, benefícios públicos". O fato é que Mandevilie<br />
aceitava a noção hobbesiana de um homem egoísta que é o lobo do homem e que<br />
persegue, até a morte, poder e mais poder. A sociedade não está baseada nas<br />
"qualidades amistosas e afeições carinhosas" da natureza humana, nem nas<br />
virtudes de razão e abstinência, mas antes naquilo que "chamamos o mal neste<br />
mundo, moral tanto quanto natural". O pecado social é não somente inevitável<br />
mas é o "grande princípio que nos torna sociáveis". O homem possui uma<br />
tendência irresistível ao prazer e à preguiça, e não há por que pensar que jamais<br />
trabalharia se a isso não fosse obrigado pela necessidade imediata de<br />
sobrevivência. A visão pessimista da existência manifestada por Mandevilie<br />
provocou uma tempestade de protestos hipócritas e desencadeou um clamor de<br />
indignação. Foi mesmo por um júri condenado como ofensivo à moral e aos bons<br />
costumes.<br />
Fundamentalmente, porém, foi Mandevilie um dos primeiros pensadores a<br />
abordar uma problemática que nos parece hoje da maior relevância, na era póssocialista<br />
em que estamos penetrando: como conciliar um sistema capitalista,<br />
sustentado no egoísmo, no cálculo frio e na procura do lucro e do lazer, com uma<br />
ordem moral que impeça abusos e aproveitamentos cínicos. Se pode o socialismo<br />
ser definido como o altruísmo imposto pela polícia, a questão crucial -<br />
particularmente em nosso país - passa a ser a seguinte: como agora aplicar Adam<br />
Smith sem ter que recorrer ao delegado de polícia? Mandevilie tentou, há quase<br />
300 anos, a isso responder.<br />
Entretanto, o holandês apenas exagerava com uma fábula fantasista a<br />
noção utilitarista, que se popularizava num ambiente trabalhado pela ética<br />
protestante em processo de secularização: a democracia consiste numa livre<br />
conciliação de interesses. A economia é a racionalização do conflito dos interesses<br />
privados para o bem de todos. A grande e genial contribuição de Adam Smith é<br />
que a própria concorrência de interesses egoístas, no mercado, colabora - se<br />
dentro de uma estrutura legal de tipo lockeano que assegura o respeito à<br />
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