O Sacrifício - Unama
O Sacrifício - Unama
O Sacrifício - Unama
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
www.nead.unama.br<br />
Maurícia, voltando-se, reconheceu Bezerra num homem que transpusera a<br />
porteira e se encaminhava para a casa-grande. Ainda assustada, ainda comovida, ela<br />
não hesitou um momento. Entrou na palhoça com medo de ser alcançada por ele.<br />
No mesmo instante, uma mulher que saíra de sob uma meia água coberta de<br />
palha cerca de cem passos antes da casa-grande, encaminhou-se para a porteira.<br />
Essa meia água estava algum tanto afastada do caminho e quase oculta por uma<br />
renque de laranjeiras idosas, que iam terminar na casa de purgar. Cobria a cacimba,<br />
onde se lavava a roupa do engenho e dos moradores circunvizinhos.<br />
Ordinariamente, havia gente ali; quando não eram escravas, eram mulheres livres<br />
dos arredores, que, com permissão de Albuquerque, iam exercer ali, por ser mais<br />
fácil, a sua indústria. Às vezes, entre elas, apareciam rapariguinhas novas, algumas<br />
bem parecidas e gentis, a cujo número pertencia uma cachopa cor de canela, de<br />
cabelos cacheados ao longe, olhos rasgados, boca grande, mas engraçada, formas<br />
grosseiras e fornidas. O rapazio do povoado andava caído por ela. Falava-se entre o<br />
povo na filha da cabocla Januária — a formosa Janoca — como nos salões de<br />
Recife se falava da filha do comendador M..., na sobrinha do Barão de L..., ou na<br />
irmão do D. F..., a saber, com admiração e elogios. Januária morava perto do<br />
engenho, mas do lado de fora do cercado. Passava a vida desregrada, dando maus<br />
exemplos para a filha, para a qual não tinha cuidados de que ela precisava pelos<br />
seus verdes anos. Muitas vezes, ia ao Recife, deixando a rapariga a lavar roupa na<br />
palhoça, entregue a Deus e à aventura. Nesse dia, com ser domingo, Janoca voltava<br />
ao lusco-fusco da meia água para casa; Sobraçava uma trouxa der roupa lavada.<br />
Vinha distraída, ou pensando em oculto objeto. Nem ela, nem Bezerra viram<br />
Maurícia, porque encontrando-se bem defronte a choupana arruinada, alimentaram<br />
curiosos diálogo, que Bezerra certamente não quisera fosse ouvido por sua mulher.<br />
A rapariga, com certo disfarce cínico, foi a primeira que o tirou a terreiro.<br />
— Vosmecê bem me podia dar um vestido para o Espírito Santo.<br />
— Não é a primeira vez que me dizes isto, diabrete! Por que achas de te<br />
meter comigo, quando há por aí tanto rapaz que pode corresponder às tuas poucas<br />
vergonhas?<br />
— Aqui só há dois rapazes que me caíram em graça; mas um, que podia, não<br />
quer e até parece não entender disto; vive somente para a sua noiva; é o Sr. Paulo.<br />
O outro quer, mas não pode. É o caixeiro da venda do canto da rua.<br />
— Pois procura outros, que hás de achar. Não vês que sou velho, que já<br />
tenho cabelos brancos?<br />
Assim falando, Bezerra volveu os olhos à roda de si como quem queria<br />
certificar-se de que ninguém o via a conversar com a cachopa.<br />
— Não se assuste. As moças do engenho saíram a passear com seu Paulo;<br />
os negros andam vadiando na povoação. Até mamãe foi ao Recife e me deixou só.<br />
— E eu também te deixo aí.<br />
Bezerra deu o andar para o engenho. Janoca, que ficara de pé, defronte da<br />
palhoça abandonada, disse com voz lamuriosa: — Por que não me dá o vestido que<br />
peço? É uma coisa tão pequena para o senhor!<br />
A estas vozes, Bezerra voltou-se. Janoca tinha um pé firma no chão e o outro<br />
posto sobre o cotovelo de um dos cajueiros, o qual ficava na altura dos joelhos de<br />
uma pessoa. A saia, já de si curta, lhe descobria, pela atitude em que estava a<br />
46