O Sacrifício - Unama
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www.nead.unama.br<br />
Maurícia praticara este ato de energia não tanto por ciúme, como por ferida<br />
em seus melindres; e estava no ânimo de não retroceder, ainda diante das mais<br />
graves conseqüências.<br />
— Depois disto — dissera ela — só se deve seguir ou a completa emenda<br />
dele, ou a saída de um de nós dois.<br />
Bezerra, que, ao princípio, tomara esta resolução em ar de mofa, caindo em si<br />
depois, julgou-se na obrigação de refletir mais maduramente. Tinham mudado muito<br />
as suas condições. No Pará, três anos antes, as coisas eram outras, e ainda assim<br />
Maurícia triunfara da sua tirania, quanto mais em Pernambuco, estando ela no seio<br />
de uma família respeitável, que da sua honra e discrição tinham o melhor documento<br />
em vê-la praticar o sacrifício de voltar à companhia dele. Outras considerações de<br />
não inferior tomo lhe ocorreram. Se, por qualquer modo, viesse a desgostar<br />
Albuquerque, de que iria viver? No engenho estava incumbido de fazer a<br />
escrituração relativa à venda dos açucares, do mel, da aguardente e dos demais<br />
produtos da grande propriedade. Por este trabalho, que Paulo costumava fazer aos<br />
domingos, arbitrara-lhe Albuquerque módico vencimento; mas lhe dava de graça<br />
casa para morar, carne e farinha para a mesa, escravos para o servirem. Se lhe<br />
faltassem tudo isto, de repente, a que ficaria reduzido? A não ter um lugar onde cair<br />
morto. Faltava-lhe coragem para tentar novos meios de vida. O cabelo, que<br />
começava a alvejar-lhe a testa que mostrava cortada de grandes rugas; os olhos<br />
fundos, as faces murchas indicavam que as forças começavam a desampará-lo.<br />
Da sua cogitação veio tirá-lo o relógio que do alto, entre as duas janelas,<br />
parecia fitá-lo impassível como a fatalidade. Foram doze pancadas que deu.<br />
Ele então levantou-se da cama, onde estivera a pensar, e encaminhando-se<br />
para a alcova, disse:<br />
— Façamos as pazes, ainda que para isso seja preciso pedir mil perdões.<br />
Bateu na porta devagarinho, depois mais fortemente, chamando por Maurícia,<br />
que não lhe deu uma só palavra em resposta. Esteve alguns instantes de pé, a olhar<br />
para dentro através da fechadura. De uma das vezes, abalou a porta com toda força,<br />
quase deliberado a dar com ela em terra por maior que fosse o ruído que produzisse<br />
tal violência; mas julgou prudente variar de conselho, ouvindo ruído de vozes da<br />
banda de fora; dois negros do engenho tinham-se sentado no batente da casa, e aí<br />
conversavam em sua algaravia ininteligível. Ocorreu-lhe, então, escalar a parede, e<br />
este pensamento veio seguido de outro. Ainda estava encostada ao pé da parede do<br />
oitão da casa uma escada do engenho, de que se tinham servido os pedreiros por<br />
ocasião das novas obras. Bezerra tomou pela porta que ia dar no interior, e voltou<br />
pouco depois com a escada que colocou de manso na parede. Subiu. Entre a<br />
parede e a telha vã, havia o espaço da altura de um homem; fácil, portanto, se<br />
afigurou a Bezerra a sua descida para dentro do quarto com o auxílio do mesmo<br />
instrumento por onde subira. Maurícia dormia. A vela de uma manga de vidro,<br />
colocada sobre uma mesa do lado da cabeceira, tinha chegado ao papel que lhe<br />
servia de calço, e ardendo com ele derramava no âmbito do aposento clarão<br />
amarelado, que trazia à imaginação o começo de um incêndio.<br />
Bezerra, equilibrando-se conforme pode, pegou da escada e levantou-a; mas<br />
quando já a travessava sobre o frechal, que corria ao longo d parede, ela,<br />
escorregando, caiu quase para o lado da sala e ele para não cair teve de a soltar.<br />
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