O Sacrifício - Unama
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www.nead.unama.br<br />
serviço doméstico, se Bezerra estava em casa. Mais de uma vez, saindo mais cedo<br />
do que costumava para ir tomar a lição de Alice, não encontrou Maurícia na casagrande<br />
o marido, que para aí lhe dissera ir. Maurícia não deu mostras e ciúme, e não<br />
o sentia. Não se casara como Bezerra por amor, mas por fazer as vontades dos<br />
pais. Tinha, então, Bezerra catorze anos menos; dispunha de meios que lhe<br />
permitiam aparecer com mais decência na sociedade; não trazia consigo um<br />
passado odioso. Mas, não obstante reunir semelhantes condições favoráveis, não<br />
lhe havia inspirado afeto especial; tinha para ele olhos simplesmente benévolos,<br />
palavras corteses e respeitosas. Agora, as circunstâncias o favoreciam ainda menos.<br />
Estava pobre, alquebrado e carregava ás costas um saco de mazelas. Procurava de<br />
novo a sua companhia para ter segura a vida que era sumamente custosa de<br />
manter. Quase dependia dela. Perdera grandes partes da antiga arrogância e<br />
cultivava a conveniência. Era um homem de corpo aberto. Mas não obstante,<br />
mostrava-se magoada, e uma vez chegou a revelar-lhe a cena que um mês antes o<br />
tinha visto representar com a mestiça entre a meia-água e a porteira. Bezerra deu<br />
pouca importância, ou nenhuma, aos ressentimentos da mulher, e não alterou o seu<br />
hábito de fazer ausência de noite e de dia.<br />
Por esse tempo, adoecendo a escrava que Albuquerque encarregara do<br />
serviço em casa de Bezerra, veio preencher-lhe a falta uma crioula nova, por nome<br />
de Brígida, que D. Carolina tinha em grande estimação. Com esta rapariga, entraram<br />
na casa novos desgostos para Maurícia. Bezerra dirigia-lhe gracejos a furto, e<br />
lançava-lhe olhares de ternura ignóbil. Um tarde, em que Maurícia voltara mais cedo<br />
do engenho, surpreendeu o marido em prática familiar com a cativa. Deu-se por<br />
ofendida, e as lágrimas saltaram-lhe dos olhos. Teve ímpetos de ir imediatamente<br />
contar à D. Carolina o que vira; mas a vergonha de revelar a vileza reteve-a<br />
silenciosa. Ela, porém, não pode acabar consigo que não desse grande<br />
demonstração da sua profunda mágoa àquele que era desta causador.<br />
— Senhor — disse — daquela porta para fora, poderemos continuar a ser dois<br />
consortes que, depois de várias e cruéis vicissitudes, convieram em encurtar a<br />
distância que os trazia afastados, e emendar o roto laço do combatido afeto, mas, das<br />
portas adentro, espero que estejamos de hoje em diante tão distantes como se entre<br />
nós se interpusessem, como já se interpuseram, dezenas de léguas de oceano.<br />
Bezerra teve para esse assomo de justo e elevado agravo risos mofadores.<br />
Saiu e voltou tarde. A porta da alcova estava trancada por dentro. Bezerra ficou<br />
alguns momentos em pé junto dessa porta, que o ameaçava com ares de sentença<br />
de desquite.<br />
— Eu podia por no chão esta porta e entrar; mas era dar muita importância ao<br />
que merece pouca.<br />
Encaminhou-se para o gabinete fronteiro, onde havia uma cama de solteiro,<br />
algumas cadeiras, uma mesa e um toucador.<br />
Ao lado da cama, viu os baús que mandara conduzir do Recife no dia da sua<br />
mudança para o engenho. Dos ganchos de um cabide de faia, pendiam os seus<br />
paletós e calças. Aos pés da cama, estava o seu par de chinelas.<br />
— É um mandado de despejo. Por tão pouco!...<br />
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