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Marginalia - Curso Objetivo

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O peixe que devia ser, por esse tempo, quando os animais ouviam e falavam, de um<br />

natural mofador e grosseiro, sem lhe responder à pergunta, arremedou-a nas palavras e<br />

exagerou para melhor debicar o modo por que Nossa Senhora tinha articulado os lábios, a fim<br />

de pronunciá-los. O linguado não sabia com quem estava falando, mas veio a sabê-lo, quando<br />

Nossa Senhora lhe disse:<br />

- Ficarás com a boca torta, tu e toda a tua geração, até a consumação dos séculos!<br />

Assim foi e ainda hoje, mesmo no prato, à mesa do almoço ou do jantar, nós lhe<br />

vemos o estigma, que como castigo lhe deixou no seu corpo o justo ressentimento de nossa<br />

Mãe Santíssima.<br />

Não é só esse animal que mereceu dos nossos deuses católicos punição ou maldição<br />

pelo seu mau proceder em relação a eles.<br />

Manuel de Oliveira, um negro velho, cabinda de nação, muito fiel e dedicado, que<br />

viveu com a minha família e me viu menino de sete ou oito anos, tendo morrido há pouco<br />

tempo, não gostava de gatos e não me cessava de explicar essa sua ojeriza:<br />

- "Seu Lifonso", gato é bicho do diabo... É bicho que Nosso "Sinhô" não gosta; é<br />

bicho "madiçuado" por Deus. Cachorro, sim...<br />

Contava-me, então, meu saudoso preto velho o motivo por que ficaram malditos os<br />

gatos, que, nos nossos dias, depois de Pöe e Baudelaire, estão em moda entre os literatos<br />

poetas, damas de sociedade e outras pessoas dignas de verem o seu "interior" estampado nos<br />

jornais catitas e revistas de elegância.<br />

Nosso Senhor Jesus Cristo estava na cruz e teve sede. Passaram homens, mulheres,<br />

bichos e ele pedia água. Ninguém se importou e não lha trouxe. Passou, então, um gato que<br />

Nosso Senhor julgou ser capaz de fazer a obra de caridade que o Homem-Deus suplicava lhe<br />

fizessem. Rogou ao gato que lhe trouxesse um pouco d'água para lhe abrandar a ardência dos<br />

seus lábios ressecados.<br />

- Gato, "Seu Lifonso" - fala o Manuel de Oliveira, - que é bicho mau e do<br />

"demônho", sabe o que fez? Pois fez isto: "mixô" numa caneca e deu a "bebê" a "Nosso<br />

Sinhô". "Nosso Sinhô" mardiçuô ele pra sempre e até hoje "ele" é "mardiçuado" por Deus, é<br />

bicho que tem parte com o “capeta”.<br />

- E o cachorro, Manuel? - perguntava eu.<br />

- Cachorro não fez isso. Buscou água fresca e deu a "Nosso Sinhô", por isso ele é<br />

bicho de Deus.<br />

A história de Manuel de Oliveira é muito conhecida e familiar entre nós, havendo<br />

outras muitas que explicam a maldição de certos animais, as suas deformidades, mas que,<br />

infelizmente, agora não me acodem.<br />

Algumas não personificam o Deus ou o Santo que os castigou, mas outras<br />

personalizam-nos francamente.<br />

É coisa muito sabida o horror que os judeus e muçulmanos têm ao porco e a tudo<br />

que a ele se refere.<br />

Por suporem ser de porco a graxa com que deviam umedecer os cartuchos de umas<br />

certas espingardas antigas, tendo de mordiscá-los antes de enfiá-los na culatra das carabinas,<br />

os cipaios muçulmanos da Índia, a serviço da Inglaterra, levantaram-se em uma formidável<br />

revolta que pôs em perigo a dominação britânica nas terras do Ganges.<br />

Muitos autores querem ver nessa ojeriza, tão poderosa sobre as almas duma grande<br />

parte da humanidade, uma prescrição com fim higiênico feita religiosamente pela Biblia;<br />

outros, porém, julgam encontrar em tal coisa uma singular deformação de um totemismo<br />

primitivo e esquecido.<br />

Num caso ou noutro, seja qual for a razão, podemos afirmar que os animais<br />

irracionais, desta ou daquela forma, entram mais na nossa vida do que supomos. É sobre o seu<br />

sofrimento, sobre as suas próprias vidas que nós erguemos a nossa.

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