Marginalia - Curso Objetivo
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Admiro muito a religião católica; mas sei bem que ela é uma criação social, baseada<br />
na nossa necessidade fundamental de Deus e impregnada do cesarismo romano, que a anima e<br />
a sustém no seu velho sonho de domínio universal; sei que ela tem sabido aproveitar as<br />
conquistas de toda a ordem obtidas por este ou aquele homem, incorporando-as ao seu<br />
patrimônio, e até aproveitou-se em seu favor, de argumentos dos seus inimigos contra ela; sei<br />
bem disso tudo.<br />
Porém, essa admirável plasticidade da Igreja, através de quase dois mil anos de<br />
existência, amoldando-se a cada idade e cada transformação social, poderia tentar a outro,<br />
que, no assunto, tivesse verdadeira erudição pois não tenho nenhuma, a demonstrar que tem<br />
havido, desde o édito de Milão, ou mesmo antes, até hoje, várias igrejas superpostas com os<br />
afloramentos fatais das mais antigas através das mais modernas.<br />
Seria certamente um capítulo de uma espécie de geologia religiosa em que, talvez, a<br />
classificação dos termos não fosse difícil de estabelecer.<br />
Penso e Creio é luxuriante e há tanta riqueza de idéias nele que a gente se perde<br />
querendo escolher as que deseja discutir. Vou me deter alguns instantes no que toca à<br />
extinção da escravidão antiga.<br />
É fato, como diz o Sr. Perilo, citando o Sr. Guiraud, que ela instituindo o dogma da<br />
fraternidade humana matava a escravatura.<br />
Mas, nessa questão do acabamento dessa odiosa instituição na Europa, na sua<br />
transformação em selvagem, sob a benéfica influência da Igreja, e no final desaparecimento<br />
desta última forma de elementar trabalho humano, desaparecimento que só se fez total com a<br />
Grande Revolução (Vid. Taine - Origines de la France Contemporaine); - nessa questão há<br />
um argumento em desfavor do papel social da Igreja moderna.<br />
Esse serviço, que não é preciso aqui mostrar de quanto é credora a humanidade ao<br />
catolicismo, segundo tudo faz crer, deve-se pela primeira vez, como sendo patrimônio dele, a<br />
um filósofo que a Igreja mais combate - Augusto Comte.<br />
Entretanto, quem acabou com esta infame instituição, a que o mundo antigo, no<br />
acertado dizer do Sr. Perilo, estava a tal ponto identificado que os seus filósofos mais<br />
eminentes, mesmo o virtuoso Sócrates, mesmo o quase divino Platão e o conciso Aristóteles<br />
reconheciam a sua legalidade; entretanto, dizia eu, quem conseguiu a vitória de extinguir<br />
semelhante infâmia, não soube ou não pôde impedir a moderna escravidão negra nem<br />
propagou a sua abolição. Há exemplos isolados de eclesiásticos que a combateram; mas nunca<br />
um ato solene da igreja que a condenasse. A sua atitude perante a nefanda instituição foi a dos<br />
filósofos antigos de que fala o Sr. Perilo; foi a de reconhecer-lhe, senão a legalidade, pelo<br />
menos a necessidade.<br />
Não fossem os filósofos do século XVIII, especialmente Condorcet, e os filantropos<br />
ingleses, talvez ainda a escravatura negra estivesse admitida como legal, apesar dos<br />
Evangelhos, onde, afinal, todos nós que conhecemos os homens bebemos inspiração.<br />
A Convenção extinguiu-a nas colônias francesas, para Napoleão criminosamente a<br />
restabelecer; e essa grande Convenção Francesa, conforme tudo leva a crer, não foi um<br />
concílio muito ortodoxo.<br />
É por isso que Macaulay diz, não me lembro onde, que, durante o século XVII, os<br />
Evangelhos tinham passado das mãos dos religiosos para a dos filósofos, ateus ou não.<br />
Estou a muitas centenas de quilômetros dos meus modestos livros, senão citaria<br />
integralmente esse famoso trecho do grande escritor inglês.<br />
Esta incapacidade que a Igreja demonstrou para abolir a escravidão negra nas<br />
colônias dos países catolicíssimos, como a França, a Espanha e Portugal, dá a entender que<br />
ela não tem mais força para reprimir no coração dos seus fiéis a ganância, a cupidez, mesmo<br />
quando essa ambição desenfreada de dinheiro e de lucro se faça em troca da dignidade moral<br />
da pessoa humana.