Marginalia - Curso Objetivo
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VIII<br />
SUPERSTIÇÕES DOMÉSTICAS<br />
Houve quem dissesse que a superstição é a religião do homem que a não tem. Isto<br />
não quer dizer que todos os homens, as mulheres principalmente, desta ou daquela seita ou fé<br />
religiosa, não as tenham também.<br />
Na Europa, em qualquer parte dela, as superstições abundam. Todos nós sabemos<br />
disso, mas é idéia feita que só os italianos o sejam e um pouco os espanhóis. Dá-se lá o que se<br />
dá entre nós, onde os sociólogos profundos atribuem as nossas, que, às vezes são bem<br />
européias, a depósitos na nossa consciência de crendices africanas, quando não tupaicas.<br />
É própria da nossa fraqueza mental essa pressa em explicar com criações arbitrárias<br />
o que não podemos cabalmente elucidar de outra forma; daí essas simplistas generalizações de<br />
nossos falsos sábios, quanto às origens das nossas crendices e abusões.<br />
O homem, cheio de mistério e cercado de mistério, vivendo aqui, ali e acolá, sempre<br />
procura nas coisas externas sinais seguros do seu destino e marcos certos para o seu roteiro na<br />
vida. É uma atividade fundamental do nosso espírito que se traduz de vários modos desde os<br />
samoiedas e esquimós até os araucânios e patagões. Os estudiosos de folclore já têm<br />
observado essa unidade espiritual da raça humana, vendo nos seus contos, fábulas, cantigas,<br />
ritos particulares e superstições uma relativa analogia substancial de temas a se manifestar<br />
com aparências narrativas de formas variadas.<br />
O Sr Van Gennep diz que da Cendrillon de Perrault, conhecida por nós como A Gata<br />
Borralheira, há mais de quatrocentas variantes, de todos os tempos e todos os países, desde a<br />
Europa até ao Extremo-Oriente e à nossa América.<br />
O que se dá com a conhecidíssima Gata Borralheira dá-se com quase toda a<br />
produção literária coletiva e anônima cujas manifestações são encontradas em todas e as mais<br />
diversas partes da Terra e na boca de raças diferentes, não se podendo, entretanto, determinar<br />
o foco de sua irradiação.<br />
O autor que citei diz que a conquista da Argélia, com o estudo dos árabes e berberes,<br />
demonstrou a existência na África do Norte de múltiplos temas, gozando de uma extensa voga<br />
na Europa Central. A minha tenção, porém, não é a de fazer um estudo mais amplo sobre o<br />
assunto, mesmo porque não me sobra nem a competência nem a vasta leitura que ele exige.<br />
Tento unicamente com o que tenho observado e ouvido, nas minhas conversas com<br />
pessoas do povo e gente humilde, registrar impressões, dar o meu depoimento individual, sem<br />
nenhuma outra pretensão mais elevada.<br />
Nas manifestações da psicologia popular, uma das mais curiosas é a superstição<br />
caseira que se transmite de pais a filhos, atravessando gerações e as situações mais diversas de<br />
fortuna das respectivas famílias.<br />
Desde menino, gosto muito de pombos; e, como sempre com os meus gostos, não<br />
distingo no objeto deles o que é de luxo ou o que é comum. Muitas vezes, quis, com os<br />
níqueis que ajuntava em um cofre, possuir um casal; e cheguei mesmo a projetar, em um<br />
caixão de sabão, o pombal. Nunca em casa me permitiram que eu os tivesse. É crença familiar<br />
entre nós que os pombos são, quando se reproduzem muito, sinal de prosperidade no lar; mas,<br />
desde que comecem a fugir, indicam que as coisas vão desandar.<br />
É uma crendice geral que qualquer observador pode colher entre as famílias pobres e<br />
remediadas; mas para a qual será muito difícil achar uma razoável explicação. Os pombos,<br />
arrulhantes pombos das beiras das casas, que eram na antiguidade consagrados a Vênus e cuja<br />
posse no regime feudal constituía um privilégio de senhor, são perseguidos, ou eram no meu<br />
tempo de menino, por essa abusão familiar de nossa gente pobre.