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Marginalia - Curso Objetivo

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ainda as guardo na memória. Se, como as retive, tivesse retido as "histórias" que me contavam<br />

naquela idade, tirando as que Perrault registra e dando-lhes forma, como a "Gata Borralheira",<br />

poderia fazer um volumezito bem aproveitável. Mas não as guardei e pouco retive de cor<br />

dessa arte oral e anônima, afora essas quadrinhas e outros versos como o do famoso "chula":<br />

Onde vai, senhor Pereira de Morais?<br />

Você vai, não vem cá mais;<br />

As mulatinhas ficam dando aism,<br />

Falando baixo, etc. etc.<br />

Todas essas coisas ingênuas de contos, anedotas, anexins, quadrinhas, lendas, foram<br />

soterradas na minha memória por uma avalanche de regras de gramática, de temas, de teorias<br />

de química, de princípios de física, disto e daquilo, que, aos poucos, me vão morrendo na<br />

lembrança, para deixar emergir nela as histórias humildes do Compadre Macaco, do Mestre<br />

Simão e da Comadre Onça, dos meus pobres sete anos de idade.<br />

Nessas confusas recordações que tenho das fábulas e "histórias" populares que me<br />

contaram entram animais. O macaco é o símbolo da malignidade, da esperteza, da pessoa<br />

"boa na língua", em luta com a onça, cheia de força, mas traiçoeira e ingrata. Não me fio nas<br />

minhas lembranças, mas sempre me pareceu assim. Os estudiosos dessas coisas que<br />

verifiquem se a minha generalização é cabível.<br />

Em uns dos meus modestos livros, eu transcrevo uma das "histórias do macaco", em<br />

que ele aparece mais ou menos com essa feição. Não sei se ele figura em alguns dos nossos<br />

florilégios e estudos desses assuntos de folclore. Quem me contou, foi um contínuo da<br />

Secretaria da Guerra, onde fui empregado, ex-praça do Exército e natural do Rio Grande do<br />

Norte, não sei de que localidade: o Sr. Antônio Higino.<br />

A onça aí figura perfeitamente com o feitio moral a que aludi, mas a manha do<br />

macaco, para vencê-lo, socorre-se da cumplicidade do Cágado ou Jabuti.<br />

Apesar das manhas, planos e esperteza do macaco, os contos populares lhe<br />

emprestam também alguma generosidade e alguma graça e uma filosofia de matuto<br />

"tinguejador". Há mesmo em todas elas, ao que me parece, uma grande simpatia por ele. Se o<br />

nosso povo não o fez o seu "totem", de alguma forma o faz o seu herói epônimo.<br />

Os estrangeiros, talvez, tenham alguma razão quando nos chamam de "macaquitos"<br />

ou "little monkeys", como me ensinou esse singular "totalista" que é o meu amigo Tigre.<br />

Contudo, devido à ignorância, já confessada, que tenho dessas coisas de folclore, eu<br />

não me animo a asseverar que a minha generalização possa ser de qualquer forma certa; e o<br />

intuito dessas linhas não é esse. O que elas visam, é explicar as razões por que fui levado a<br />

procurar, na conversa com homens e raparigas do povo, obter narrações, contos, etc, de<br />

origem popular, sem mesmo indagar se eles foram publicados, e dar nesta revista o resultado<br />

das minhas conversações com gente de toda a parte.<br />

Sou homem da cidade, nasci, criei-me e eduquei-me no Rio de Janeiro; e, nele, em<br />

que se encontra gente de todo o Brasil, vale a pena fazer um trabalho destes, em que se mostre<br />

que a nossa cidade não é só a capital política do país, mas também a espiritual, onde se vem<br />

resumir todas as mágoas, todos os sonhos, todas as dores dos brasileiros, revelado tudo isso na<br />

sua arte anônima e popular.<br />

Queira Deus que leve avante o meu inquérito! Amém.<br />

Hoje, 20-3-1919.

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