14.05.2013 Views

Marginalia - Curso Objetivo

Marginalia - Curso Objetivo

Marginalia - Curso Objetivo

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

Há alguns anos, mantendo estreitas relações com o proprietário de uma tipografia, na<br />

rua da Alfândega, tinha ocasião de passar por ela toda a tarde, demorar-me, a fazer isto ou<br />

aquilo, nas mais das vezes conversar unicamente.<br />

Aos poucos fui tomando conhecimento com o pessoal; e, em breve, era de todos<br />

camarada. A tipografia do meu amigo tinha a especialidade de imprimir jornais de "bicho" e<br />

ele mesmo editava um - O Talismã - que desapareceu.<br />

Era tão rendosa essa parte de sua indústria tipográfica que ele destacava um único<br />

tipógrafo para executá-la. O encarregado dessa obra, além de compor os jornais, redigia-os<br />

também, com o cuidado indispensável em tais jornais-oráculos de por, sob este ou aquele<br />

disfarce de seções, de chapinhas, de palpite deste ou daquela, todos vinte e cinco animais da<br />

rifa do Barão.<br />

Conversando mais detalhadamente com o tipógrafo dos jornalecos de bicho, ele me<br />

deu inúmeras informações sobre os seus periódicos "zoológicos". O Bicho, o mais famoso e<br />

conhecido, dava de lucro, na média, 50 mil-réis por dia, quase o subsídio diário de um<br />

deputado naquele tempo; A Mascote e O Talismã, se não forneciam um lucro tão avultado,<br />

rendiam mais, por mês, que os vencimentos de um chefe de seção de secretaria, naqueles<br />

anos, a regular por aí assim, em setecentos e poucos mil-réis.<br />

Solicitado pelas informações do jornalista "animaleiro", pus-me a observar, nas<br />

vendas da minha vizinhança que, pela manhã, o tipo de compras era este: um tostão de café,<br />

um ou dois de açúcar e um Bicho ou Mascote.<br />

O tipógrafo tinha razão e ele mesmo se encarregava de fortificar a minha convicção<br />

do império excepcional que o "Jogo do Jardim" exercia sobre a população carioca.<br />

Mostrou-me pacotes de cartas de toda a sorte de gente, o que se via pela redação, de<br />

senhoras de todas as condições, de homens em todas as posições.<br />

Li algumas. Todas ressumavam esperança na sua clarividência transcendente para<br />

dizer o bicho, a dezena e a centena que dariam à tarde deste ou qualquer dia; algumas eram<br />

agradecidas e se alongavam em palavras efusivas, em oferecimentos, por terem os missivistas<br />

acertado com o auxílio dos "palpites" do Dr. Bico-Doce. Lembro-me de uma assinada por<br />

certa adjunta de um colégio municipal, no Engenho de Dentro, que convidava o pobre<br />

tipógrafo, já meio tuberculoso, a ir almoçar ou jantar com ela e a família. Recordo-me ainda<br />

do nome da moça, mas não o ponho aqui, por motivos fáceis de adivinhar.<br />

O prestígio da letra de forma, do jornal, e o mistério de que se cercava o<br />

"palpitador", operavam sobre as imaginações de uma forma verdadeiramente inacreditável.<br />

Julgavam-no capaz de adivinhar de fato o número a ser premiado na "Loteria", ou, no<br />

mínimo, apalavrado com os homens dela, podendo, portanto, saber de antemão os algarismos<br />

da felicidade.<br />

Apesar da relutância do redator-tipógrafo de tão curiosos exemplares da nossa<br />

imprensa cotidiana, eu pude conseguir algumas cartas, das quais uma, por me parecer a mais<br />

típica e mostrar de que maneira a situação desesperada de um pobre homem, pode reforçar a<br />

fé no "Jogo do Bicho", como salvação, e a ingênua crença de que o redator do jornaleco de<br />

palpites seria capaz de indicar o número a ser premiado, eu a transcrevo aqui, tal e qual, só<br />

omitindo a assinatura e o número da residência do signatário. É um documento humano de<br />

impressionar e de comover, por todos os aspectos. Ei-lo: (cliché de um envelope selado e<br />

subscritado: "Ilmo. Dig.mo Snr. Bico-Doce Muito Dig.mo Redator-Chefe do Jornal O<br />

"Talismã" Rua da Alfândega n.0 182 Sobrado").<br />

"Ilmo. Sr. Dr. Bico-Doce. - Rio de Janeiro, 20-12-911. - Em primeiro que tudo<br />

muito estimarei que esta inesperada Carta vos encontrem Com perfeita Saúde Conjuntamente<br />

a toda vossa família, e possa fruir os mais esplendorosos gozos.<br />

"Enquanto eu minha família, vamos passando uma vida penosa. Senhor, vós que<br />

Sois um bondoso, vós que Sois tão caridoso, vós que Deus dotou Com tanta doçura, e que

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!