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Marginalia - Curso Objetivo

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É um caso de "moléstia da cor", como qualifica Sílvio Romero, tratando de Tito<br />

Lívio de Castro, no prefácio que escreveu para - A mulher e a sociogenia - desse malogrado<br />

escritor.<br />

O derivativo para essa tortura, para essa moléstia especial, no personagem do Sr.<br />

Enéias Ferraz, não é o estudo, embora seja ele um estudioso; não é o bordel, embora não<br />

hesite em freqüentar o mais baixo que seja; não é a arte, embora escreva e seja ilustrado; é o<br />

álcool, álcool forte, "whisky", cachaça.<br />

Redator de jornal, possuidor de uma pequena fortuna, leva uma vida solta de<br />

boêmio, trocando, na verdade, o dia pela noite, quando corre lugares suspeitos, após os<br />

trabalhos de redação, mesmo, às vezes, nela dormindo.<br />

A sua dor íntima, a ninguém revela; e ninguém percebe naquela alma e naquela<br />

inteligência, o motivo de tão estranho viver quando, quem o levava - como diz o vulgar -<br />

"podia ser muita coisa".<br />

Temperamentos como este que o Sr. Enéias Ferraz estuda, tão comuns entre nós,<br />

nunca tentou a pena de um romancista. Ao que me conste, o autor da História de João Crispim<br />

é o primeiro que o faz, pelo menos, na parte estática, se assim se pode dizer.<br />

Como o Sr. Ferraz se saiu da tentativa, toda a gente pode vê-lo com a leitura de seu<br />

interessante e atraente livro.<br />

Há nessas almas, nesses homens assim alanceados, muito orgulho e muito<br />

sofrimento. Orgulho que lhes vem da consciência da sua superioridade intrínseca, comparada<br />

com os demais semelhantes que os cercam; e sofrimento por perceber que essa superioridade<br />

não se pode manifestar plenamente, completamente, pois há, para eles, nas nossas sociedades<br />

democraticamente niveladas, limites tacitamente impostos e intransponíveis para a sua<br />

expansão em qualquer sentido.<br />

De resto, com o sofrimento, um homem que possui uma alma dessa natureza<br />

enche-se de bondade, de afetuosidade, de necessidade de simpatizar com todos, pois acaba,<br />

por sua vez, compreendendo a dor dos outros; de forma que, bem cedo, está ele cheio de<br />

amizades, de dedicações de toda a sorte e espécie, que lhe tiram o direito de uma completa e<br />

total revolta contra a sociedade que o cerca, para não ferir os amigos.<br />

João Crispim é assim: por toda a parte, é querido; por toda a parte, é estimado.<br />

O marmorista que lhe fez o túmulo da mãe simpatiza com ele; mas lastima que<br />

gostasse tanto do "copito". Entretanto, mal sabia ele, o marmorista, que se não fôsse o<br />

"copito" - expansão da dor íntima de Crispim - talvez o fabricante de túmulos não amasse o<br />

moço mulato.<br />

Cercado de amigos, encontrando por toda a parte uma afeição e uma simpatia, uma<br />

vida, como a do personagem do Sr. Ferraz, perde a sua significação e trai o seu destino.<br />

A sua significação era a insurreição permanente contra tudo e contra todos; e o seu<br />

destino seria a apoteose, ou ser assassinado por um bandido, a sôldo de um poderoso<br />

qualquer, ou pelo governo; mas a gratidão e as amizades fazem-no recalcar a revolta, a<br />

explosão de ódio, de fel contra as injustiças que o obrigaram a sofrer, tanto mais que os que a<br />

sorte aquinhoa e o Estado estimula, com honrarias e cargos, não têm nenhuma espécie de<br />

superioridade essencial sobre ele, seja em que for.<br />

Crispim, nem de leve, se insurgiu, a não ser inofensivamente em palestras e na<br />

platônica insurreição do cálice de cachaça, sorvidos, nos lábios de um rapaz, embora mulato,<br />

mas educado e com instrução superior à vulgar. Morre, porém, debaixo das rodas de um<br />

automóvel, num sábado de carnaval; vai para o necrotério, donde a caridade do Estado, após<br />

os folguedos de Momo - como se diz nos jornais - leva-lhe o cadáver para [a] sepultura, como<br />

indigente, pois não foi reconhecido. A orgia carnavalesca não permitiu que o fosse...<br />

Não quero epilogar sobre essa cena, que é, aliás, uma das mais belas do livro; não<br />

posso, porém, deixar de observar que um tipo como esse João Crispim devia ser conhecido,

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