Marginalia - Curso Objetivo
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Em toda a parte, pelo menos nos países europeus e os que surgiram deles, a coruja é<br />
tida como uma ave de mau agouro e o seu pio, ouvido à noite, vaticina grandes desgraças<br />
domésticas; entretanto, essa ave é na mitologia consagrada a um Deus ou Deusa que, segundo<br />
a minha fraca lembrança, nada tem de maléfico.<br />
A serpente também, a nossa cobra, tão cheia de legendas aterradoras e de<br />
habilidades cruéis, é consagrada a Minerva, a Atena grega, e o bramanismo simboliza nela o<br />
infinito, quando a representa mordendo a própria cauda.<br />
É artigo de fé entre a nossa gente roceira que ela não morde mulher grávida, e perde<br />
o poder de locomoção desde que a mulher dê três voltas no cordão que lhe amarra as saias.<br />
Os roceiros dizem que a cobra salta para morder o indivíduo que a afronta; mas os<br />
sábios negam isso. Há até, entre os matutos a recomendação de que se deve visá-la bem<br />
quando se a quer matar a tiro, pois, errando este, a cobra vem certa pela fumaça do deflagrar<br />
da carga da espingarda e morde o atirador.<br />
Negam observadores autorizados essas proezas da cobra, como negam também que<br />
ela atraia o passarinho que quer engolir.<br />
O certo é que quem tem vivido na roça ouve, às vezes, um modo particular de gemer<br />
dos passarinhos, pousados nas árvores, que não é o vulgar. Já o notei, mas disso a afirmar que<br />
seja devido ao "magnetismo" da cobra a atraí-lo, vai uma grande distância.<br />
Todas as superstições caseiras ou familiares têm quase sempre por base o temor dos<br />
gênios, das forças, misteriosas contrárias à nossa felicidade. Todas elas se dirigem contra o<br />
Azar, que acarreta moléstias, mortes, perdas de emprego e outros acontecimentos nefastos à<br />
vida satisfeita do lar; algumas, porém, têm por fim invocar a felicidade e pedir a prosperidade<br />
para ele.<br />
A ferradura, apanhada ainda quente dos pés do cavalo quando a perde, pregada atrás<br />
da porta da entrada, tem a virtude, dizem, de trazer a satisfação para a casa que a possui.<br />
Na sua generalidade, porém, as crendices populares visam evitar, afastar o "mau<br />
olhado", a "coisa feita", o "azar" , espontâneo e inexplicável ou provocado pela inveja de<br />
inimigos e desafetos.<br />
Para evitar tais coisas, há a figa-de-guiné, que os indivíduos usam, mas os lares<br />
também têm. Além desse amuleto e dos santinhos, devem-se trazer, pendurados no pescoço,<br />
para afastar desgraças e feitiços, os "breves".<br />
Chamam a isto pequenos saquinhos, coisas misteriosas, às vezes mesmo orações<br />
com a invocação de certos santos ou palavras cabalísticas.<br />
No que toca a orações, há também o costume de escrevê-las e enviar pelo correio aos<br />
amigos, com a recomendação de repeti-las tantas vezes e passá-las adiante. Tenho nos meus<br />
papéis um espécime dessas; e, se não as transcrevo aqui, é porque não as encontro à mão.<br />
A luta contra o azar, contra a incerteza do dia seguinte, nascida da convicção de que<br />
a nossa sorte é insegura e que somos cercados de entidades superiores e pouco amigas da<br />
nossa felicidade e repouso, leva-nos às mais curiosas e inesperadas superstições domésticas.<br />
Ninguém derrame tinta ou azeite no chão, porque traz azar; ninguém quebre um<br />
espelho, porque traz azar; ninguém ponha uma vassoura "de pernas para o ar", porque traz<br />
azar; ninguém deixe um calçado com a sola voltada para cima, porque traz azar; ninguém<br />
vista uma meia ou outra peça de roupa pelo avesso, porque traz azar; e assim são inúmeras as<br />
superstições que procuram evitar o azar e todas elas são obedecidas cegamente, mesmo por<br />
aqueles que se julgam livres de tais crendices.<br />
Nesse debater nas trevas da nossa vida terrena, que é como caminhamos na nossa<br />
breve existência, sem marcos, sem certeza do que fomos, do que somos e do que seremos, a<br />
nossa mais urgente necessidade é estar bem com o mistério; e, quando as religiões não nos<br />
satisfazem, quando elas, à custa de regrarem a nossa sede e fome de Infinito e de Deus, nos<br />
abarrotam de tolices e patranhas manhosas a enfarar, é para essas pequenas e ingênuas