Anais do III Encontro Nacional de Estudos sobre o Mediterrâneo ...
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O VERDADEIRO DEUS EM CUJAS MÃOS SE ACHAM TODOS OS REINOS: AGOSTINHO DE HIPONA E OS<br />
PRESSUPOSTOS DO “IMPÉRIO” DE DEUS NA TERRA<br />
humanos estariam, portanto, sujeitos a um mesmo princípio or<strong>de</strong>na<strong>do</strong>r, como nos ensina<br />
Peter Brown:<br />
Em termos genéricos, e ao contrário <strong>de</strong> muitas associações comerciais e<br />
irmanda<strong>de</strong>s religiosas – que em gran<strong>de</strong> parte eram específicas <strong>de</strong> certas<br />
classes ou <strong>de</strong>pendiam <strong>do</strong> sexo – a Igreja cristã era um grupo que se<br />
caracterizava por uma gran<strong>de</strong> varieda<strong>de</strong>. Deste ponto <strong>de</strong> vista<br />
assemelhava-se a um novo império em miniatura: os gran<strong>de</strong>s e os<br />
pequenos encontravam-se como iguais porque to<strong>do</strong>s eles estavam sujeitos<br />
à lei universal <strong>de</strong> um mesmo <strong>de</strong>us. (BROWN, 1999: 43-44.)<br />
Todavia, como perceptível, ainda no segun<strong>do</strong> trecho, a felicida<strong>de</strong> que caracterizaria<br />
o reino <strong>do</strong>s céus somente seria possível aos pie<strong>do</strong>sos, ao contrário <strong>do</strong> reino terrestre que<br />
po<strong>de</strong>ria ser partilha<strong>do</strong> por pie<strong>do</strong>sos e aqueles a quem o nosso autor, <strong>de</strong> maneira antípoda,<br />
<strong>de</strong>nomina ímpios.<br />
Os teóricos da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> afirmam ser o binômio “nós” e “vós” seus constituintes<br />
básicos 5 . Koselleck argumenta que “o simples uso <strong>de</strong>stes termos estabelecem inclusões e<br />
exclusões, e <strong>de</strong>sta maneira constituem uma condição para que a ação se torne possível”<br />
(Koselleck, 2006: 191-192). Ou seja, uma vez que os escritos agostinianos, inseri<strong>do</strong>s em<br />
uma tradição patrística, consolidavam importantes axiomas <strong>sobre</strong> a sacralida<strong>de</strong> cristã e<br />
<strong>sobre</strong> os entes que <strong>de</strong>la po<strong>de</strong>riam <strong>de</strong>sfrutar, assim como <strong>de</strong>finiam lugares sociais e<br />
históricos àqueles que se distanciavam, por erro ou <strong>de</strong>svio, das projeções escatológicas<br />
presentes em sua teologia (ROZENTAL, 2010: 128), nós <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>mos serem os escritos<br />
agostinianos não apenas indica<strong>do</strong>res <strong>de</strong> ação, mas também responsáveis por caracterizar e<br />
criar grupos políticos e sociais com base em conceitos antitéticos e assimétricos 6 que<br />
almejavam atribuir constantes naturais à condições que são históricas.<br />
Em confluência com as idéias <strong>de</strong>fendidas anteriormente, Michel <strong>de</strong> Certeau nos<br />
adverte que a violência que se encontra marcada a ferro na linguagem, <strong>de</strong>fine <strong>de</strong> on<strong>de</strong> eu<br />
falo, está inscrita no lugar <strong>de</strong> on<strong>de</strong> eu falo (CERTEAU, 2008: 88), portanto, <strong>de</strong>fine se sou<br />
“nós” ou se sou “vós”.<br />
Entretanto, há que nos atentarmos para o fato <strong>de</strong> que, tacitamente pelo menos, as<br />
classificações históricas, tais como, gregos e bárbaros, cristãos e pagãos, ou como visto na<br />
<strong>do</strong>cumentação analisada anteriormente, pie<strong>do</strong>sos e ímpios, sempre referiram-se a<br />
5 Acerca da construção das i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s e diferenças nossas reflexões referem-se, além da já referida obra <strong>de</strong><br />
Koselleck, especialmente à obra organizada por Tomas Ta<strong>de</strong>u da Silva (2000).<br />
6 Tais expressões são utilizadas por R. Koselleck para se referir a conceitos opostos assimétricos, on<strong>de</strong> o seu<br />
oposto não é somente o seu contrário em uma relação <strong>de</strong> equilíbrio, antes, ocupa uma posição <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> em uma relação hierarquizada.<br />
NÚCLEO DE ESTUDOS DA ANTIGUIDADE<br />
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