Relatório Final - A verdade sobre a escravidão negra - Comissão da Verdade
- No tags were found...
You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
A socie<strong>da</strong>de brasileira, racista em essência,construiu, face às comuni<strong>da</strong>des<br />
remanescentes de Kilombos,um particular e mais bem-acabado conjunto<br />
de mecanismos de exclusão, espoliação e marginalização, relegando os atuais<br />
quilombolas à condição de pobreza, renegando sua história e desdenhando<br />
de seus saberes e suas crenças. Como uma ideologia que mol<strong>da</strong> as relações<br />
sociais no país, o racismo desrespeita o legado cultural dessas comuni<strong>da</strong>des,<br />
ao mesmo tempo em que desvaloriza o todo seu arcabouço cognitivo, fruto<br />
de uma experiência de séculos de convivência harmoniosa com as forças <strong>da</strong><br />
natureza. O racismo assim se desdobra em várias vertentes. É racismo ambiental,<br />
que vem negar a importância <strong>da</strong>s práticas de conservação exerci<strong>da</strong>s<br />
há gerações pelos remanescentes de Kilombos. Ao mesmo tempo, a visão<br />
racista é também aquela que, além de preconizar uma falsa hierarquia entre<br />
as raças,se opõe ain<strong>da</strong> às outras formas de diversi<strong>da</strong>de, reforçando as práticas<br />
de desvalorização <strong>da</strong> identi<strong>da</strong>de quilombola, bem como preconceitos contra<br />
tudo aquilo que fuja do padrão branco, heterossexual, eurocêntrico, caso<br />
principalmente <strong>da</strong> homofobia.<br />
É importante assinalar que as comuni<strong>da</strong>des <strong>negra</strong>s, por sua cultura e<br />
organização, sempre foram muito pouco refratárias às diferenças. Os próprios<br />
Kilombos, já no século XVII, eram abrigos de negros, indígenas e brancos<br />
descontentes com o regime colonial. Havia a convivência de crenças e costumes,<br />
de forma pacífica e comunitária. O contraponto negativo <strong>da</strong>do pela<br />
socie<strong>da</strong>de branca se consolidou na prática do preconceito e <strong>da</strong> discriminação<br />
aos quilombolas através dos séculos. Há relatos de quilombolas entrevistados<br />
que testemunham o desconforto dessas pessoas ao visitar as ci<strong>da</strong>des. A<br />
total inexistência de acolhimento dos quilombolas nas áreas urbanas fazia<br />
com que essas pessoas, como forma de proteção, buscassem an<strong>da</strong>r sempre<br />
em grupo quando nas ci<strong>da</strong>des. Há ain<strong>da</strong> depoimentos que testemunham a<br />
prática, em período recente, <strong>da</strong> violência dos fazendeiros contra os trabalhadores<br />
quilombolas, práticas estas que em na<strong>da</strong> devem àquelas utiliza<strong>da</strong>s no<br />
período escravista.<br />
O racismo assume ain<strong>da</strong> uma vertente mais sofistica<strong>da</strong> e acaba<strong>da</strong>: o racismo<br />
institucional, aquele que não é exercido por uma pessoa ou um grupo,<br />
mas pelo sistema como um todo, pelas instituições, pelo aparato jurídico-institucional.<br />
O racismo institucional é, portanto, a aceitação <strong>da</strong> segregação e <strong>da</strong><br />
discriminação do negro de forma generaliza<strong>da</strong>, como modus vivendi, como<br />
uma concertação de indivíduos e instâncias institucionais, governamentais<br />
ou não, que se realimenta em prol <strong>da</strong> continui<strong>da</strong>de e <strong>da</strong> reprodução <strong>da</strong>s desigual<strong>da</strong>des<br />
raciais, buscando a anulação <strong>da</strong> identi<strong>da</strong>de e o epistemicídio, a<br />
negação dos saberes, a diabolização <strong>da</strong> cultura e <strong>da</strong> religiosi<strong>da</strong>de, na tentativa<br />
de se reduzir a pó todo o secular legado dessas comuni<strong>da</strong>des.<br />
173