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Relatório Final - A verdade sobre a escravidão negra - Comissão da Verdade

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Há de fato uma história que se pretende oficial, inscrita nos documentos<br />

encontrados nos arquivos dos cartórios, dos museus, <strong>da</strong>s igrejas,<br />

<strong>da</strong>s instâncias de governo, bem como nos anais <strong>da</strong> imprensa <strong>da</strong> época. É<br />

importante lembrar que essa é a memória do colonizador, dos senhores de<br />

terras e dos oficiais <strong>da</strong> Coroa, que dominaram e dominam o sertão de Goiás<br />

desde os primórdios <strong>da</strong> ocupação bandeirante. Esses registros, no entanto,<br />

não podem ter sua importância minimiza<strong>da</strong> ou desconsidera<strong>da</strong>, devendo<br />

sim ser contextualizados e observados de forma crítica. Não por acaso esse<br />

conjunto de documentos e <strong>da</strong>dos é tratado aqui como a “memória branca”.<br />

A memória branca compreende informações detalha<strong>da</strong>s <strong>sobre</strong> a região,<br />

mapas, fotografias, edições jornalísticas, atestações de compra e ven<strong>da</strong><br />

de terras, de posse de escravizados, recibo de impostos, enfim, um rico<br />

conjunto documental de grande valia para a problematização <strong>da</strong> história<br />

e feitura do <strong>Relatório</strong>. Entretanto, trata-se de uma visão parcial e mesmo<br />

tendenciosa <strong>da</strong>s reali<strong>da</strong>des. Uma visão eiva<strong>da</strong> de racismo e de preconceito,<br />

que discrimina, naturaliza indigni<strong>da</strong>des e percebe Negras e Negros como<br />

objetos, destituídos de opinião, sentimento ou qualquer outra forma de<br />

expressão de sua subjetivi<strong>da</strong>de. Ora, tais registros, revelam o imaginário<br />

<strong>da</strong>queles que os produziram. O mundo colonial foi demarcado pela “zona<br />

do não-ser”, como explica Fanon. O corpo negro neste universo é, no olhar<br />

do branco, o espaço <strong>da</strong> negação <strong>da</strong> humani<strong>da</strong>de. Daí a necessi<strong>da</strong>de de ir<br />

ao kilombo, acessar as articulações narrativas de suas experiências junto a<br />

seus componentes, no complexo jogo do passado e do presente, tentando<br />

captar o traçado de suas histórias, os seus pontos de vista e suas crenças,<br />

impressões e vivências, na busca <strong>da</strong> construção de um arcabouço de informações<br />

coleta<strong>da</strong>s e elabora<strong>da</strong>s junto a essas comuni<strong>da</strong>des. A esse universo<br />

chamou-se a “memória <strong>negra</strong>”.<br />

A memória <strong>negra</strong> contrapõe-se à história oficial. Nela podem ser<br />

encontrados os traços de histórias pungentes, mas ain<strong>da</strong> não conta<strong>da</strong>s<br />

ou narra<strong>da</strong>s na versão do homem branco. Trata-se de histórias omiti<strong>da</strong>s,<br />

escondi<strong>da</strong>s, esfacela<strong>da</strong>s. As histórias dos escravizados e de suas lutas<br />

pela Liber<strong>da</strong>de, mesmo em momentos e situações em que isso significava<br />

ilegali<strong>da</strong>de e seu castigo era a morte. A busca de um espaço vital<br />

para reconstrução dos laços afetivos e familiares, inscritos na formação de<br />

outras territoriali<strong>da</strong>des por dentro <strong>da</strong> lógica colonial, conheci<strong>da</strong>s como<br />

kilombos. A resistência na batalha cotidiana pela <strong>sobre</strong>vivência, pela preservação<br />

de seus referenciais ancestrais, marca<strong>da</strong> pelo convívio harmonioso<br />

com a natureza, protegendo o meio ambiente e se a<strong>da</strong>ptando a ele.<br />

Noutras palavras, está-se falando <strong>da</strong>s buscas por soberania intelectual,<br />

alimentar, epistemológica (conhecimento). Os kilombos, ao<br />

longo do processo colonial, demarcam experiências de autonomia que<br />

exigem reflexões acerca dos limites dos projetos hegemônicos dos colonizadores.<br />

Estas trazem à tona uma necessária discussão <strong>sobre</strong> outros<br />

projetos de socie<strong>da</strong>de e de civilização engendrados no território dos<br />

povos indígenas, depois legitimado como “Brasil”. Ain<strong>da</strong> hoje, as comuni<strong>da</strong>des<br />

quilombolas suscitam tais provocações frente a um projeto

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