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LITERATURA<br />
por DÉBORA JUNQUEIRA<br />
Uma idealista do lixo<br />
A obra de Carolina Maria de Jesus revela a condição e força<br />
das mulheres negras relegadas por uma sociedade elitista<br />
Quando fazia uma reportagem na<br />
favela Canindé, que havia em São Paulo,<br />
na década de 50, o jornalista Audálio<br />
Dantas se deparou com textos de uma<br />
catadora de papel e não teve dúvida<br />
de que aqueles manuscritos precisavam<br />
ser conhecidos. O texto escrito em<br />
letra de forma em cadernos reutilizados,<br />
era a obra Quarto de Despejo – Diário<br />
de uma favelada, da escritora Carolina<br />
Maria de Jesus. Mesmo tendo escrito<br />
um best seller traduzido em 13 idiomas,<br />
além de outras obras, a escritora ainda<br />
é pouco (re)conhecida.<br />
“Nem escritor transfigurador poderia<br />
arrancar tanta beleza triste daquela miséria<br />
toda. Nem repórter de exatidão<br />
poderia retratar tudo aquilo no seco<br />
escrever. Foi por isso que eu disse<br />
assim para Carolina Maria de Jesus, lá<br />
mesmo, na horinha que lia trechos de<br />
seu diário: eu prometo que tudo isto<br />
que você escreveu sairá num livro”,<br />
escreveu Audálio Dantas, na apresentação<br />
de Quarto de despejo, de 1960.<br />
Segundo ele, não foi preciso ler mais<br />
de três folhas para ver que havia en-<br />
contrado algo de muito valor. Por dois<br />
anos, acompanhou Carolina na edição<br />
de seus livros e guarda em casa alguns<br />
de seus cadernos, para quem ainda<br />
duvide da autoria.<br />
Mineira de Sacramento, negra e<br />
semianalfabeta, Carolina de Jesus mudou-se<br />
para São Paulo aos 17 anos.<br />
Foi empregada doméstica, teve três filhos,<br />
mas manteve-se solteira. Quando<br />
foi descoberta como escritora, em<br />
1958, tinha 43 anos. Morreu pobre e<br />
praticamente esquecida, em 1977. Em<br />
14 de março de 2014 foi comemorado<br />
o seu centenário de vida.<br />
“Nem escritor<br />
transfigurador<br />
poderia arrancar<br />
tanta beleza triste<br />
daquela miséria<br />
toda”.<br />
“A experiência e a vivência da autora<br />
como mulher, negra e favelada é revelada<br />
todo o tempo em seus textos: o racismo<br />
que sofria e via outros sofrerem; a condição<br />
de mulher e pobre, mãe solteira<br />
de três filhos, que sempre era relegada<br />
pela sociedade machista e elitista da<br />
época e de ainda hoje”, opina a professora<br />
Aline Arruda, pesquisadora da Universidade<br />
Federal de Minas Gerais. (Leia<br />
a entrevista).<br />
Em cadernos encontrados no lixo,<br />
ela relatava seu cotidiano. Além de<br />
Quarto de Despejo, a autora publicou<br />
Casa de Alvenaria, Pedaços de Fome<br />
e Provérbios. Postumamente, em 1982,<br />
foi lançado na França, Diário de Bitita,<br />
que chegou ao Brasil em 1986, e ainda<br />
há manuscritos inéditos na Biblioteca<br />
Nacional, no Rio de Janeiro, um tesouro<br />
para a literatura e pesquisadores. Muitos<br />
deles precisam de restauração, para<br />
que essa vasta obra desconhecida não<br />
se perca. A obra completa de Carolina<br />
está em 58 cadernos que somam 5.000<br />
páginas de texto, sendo sete romances,<br />
60 textos curtos e 100 poemas, além<br />
Revista Elas por Elas - Abril 2015