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Uma bela discussão sobre gênero.<br />
Novo diretor-criativo da Gucci, Alessandro<br />
Michele, passou por prova de<br />
fogo na grife ao apresentar, em janeiro<br />
deste ano, em Milão, a coleção masculina<br />
de inverno 2016, propondo que<br />
o homem use roupas com influência<br />
do guarda-roupa feminino. E mais, colocou<br />
mulheres desfilando suas criações<br />
masculinas na passarela.<br />
Miuccia Prada trouxe também para<br />
sua coleção 2016, jaquetas curtas e<br />
calças afuniladas, endossando a ideia.<br />
Para ela, há uma evolução nesse movimento,<br />
e a moda masculina, muito<br />
previsível e limitada, vem buscando<br />
novas influências, e a tendência é a de<br />
que o feminino e o masculino se aproximem<br />
cada vez mais.<br />
Para o estilista brasileiro João Pimenta,<br />
“estamos tão avançados que<br />
não faz sentido discutirmos o que é<br />
masculino e o que é o feminino hoje”.<br />
Até o momento nenhuma novidade.<br />
Não é de hoje que a moda flerta com a<br />
discussão sobre gênero e sobre a histórica<br />
interface entre masculino e feminino.<br />
Coco Chanel, no início da década<br />
de 1920, apropriou-se de suéteres, terninhos,<br />
casacos, calças−peças exclusivamente<br />
masculinas, para criar looks<br />
que tornaram-se atemporais, dando<br />
início à relação entre mulheres e a alfaiataria,<br />
muito presente nas vestimentas<br />
femininas durante a Segunda Guerra<br />
Mundial e cada vez mais em destaque<br />
na contemporaneidade. Chanel rompeu<br />
com a rigidez do traje feminino e imprimiu<br />
um estilo de se vestir mais simples,<br />
e que chamamos hoje de minimalista.<br />
Em 1930, a atriz Marlene Dietrich<br />
provocou enorme frisson ao usar um<br />
modelo de terno e gravata no filme<br />
Marrocos, de Josef Von Stenberg.<br />
Dietrich acabou por ditar moda no<br />
período entreguerras (1914-1918 e<br />
1939-1945), provocando grande discussão<br />
sobre o reposicionamento da<br />
mulher e sua afirmação na sociedade<br />
moderna.<br />
Nos anos 50, o rock influenciou a<br />
moda e levou para o guarda-roupa<br />
feminino e masculino a calça jeans e a<br />
camiseta. Na década seguinte, nova<br />
explosão, com Mary Quant e o surgimento<br />
da minissaia, Yves Saint<br />
Laurent com o smoking feminino,<br />
Paco Rabane e suas criações futuristas.<br />
Da segunda metade do século XX<br />
até os dias atuais, foram, e são, muitos<br />
os estilistas que dialogoram e interpretaram<br />
– e que dialogam, cada vez mais<br />
–, com o feminino/masculino. Muitas<br />
são as reinvenções, apropriações e assimilações<br />
na moda, e a androginia –<br />
ou inversão de gêneros, ou a soma<br />
dos dois ou nenhum dos dois –, tamanha<br />
é a discussão e reflexão sobre o<br />
assunto que tem se intensificado cada<br />
vez mais nesse campo.<br />
Para a feminista Judith Butler, “o<br />
gênero deixou de ser uma identidade<br />
estável, ou lugar de agenciamento do<br />
qual as ações procedem. O gênero é<br />
uma identidade tenuemente constituída<br />
por meio da repetição estilizada de<br />
atos, gestos, performances variadas<br />
que constroem a ilusão de self com a<br />
sexualidade definida”.<br />
Nessa perspectiva, recorremos ao<br />
filme Orlando, realizado em 1992, pela<br />
cineasta inglesa Sally Potter, como forma<br />
de tematizarmos o assunto. O ponto de<br />
partida do filme é a obra homônima<br />
Orlando, de autoria da escritora inglesa<br />
Virgínia Woolf. Nascido homem, o lorde<br />
Orlando, após séculos de existência e<br />
desventuras (a obra de Woolf situa-se<br />
em quatro séculos, do século XVI ao<br />
início do século XX), acorda, num belo<br />
dia, mulher. É ordenado pela Rainha<br />
Elizabeth I a permancer eternamente<br />
jovem, e sai de sua condição de aristocrata<br />
para dândi, dama, andrógino. Sua<br />
mudança mais radical é sua transformação<br />
sexual, seguida de seus relacionamentos,<br />
afetos, desacertos. Woolf criou<br />
uma das obras mais instigantes da literatura<br />
mundial sobre a discussão do gênero,<br />
adaptada de maneira extremamente<br />
original por Potter.<br />
A escolha de Tilda Swinton para<br />
viver Orlando é mais do que acertada,<br />
pois é uma das atrizes mais andróginas<br />
que o cinema já teve. Em 2013, estrelou<br />
campanha da marca Chanel e foi fotografada<br />
por Karl Lagerfeld. Para o<br />
papel da Rainha Elizabeth I, o ator<br />
Quentin Crisp foi escalado por Sally<br />
Potter. O figurino, assinado por Sandy<br />
Powell, é surpreendente, afinal, abrange<br />
quatro séculos, épocas e estilos distintos,<br />
como o rococó, o clássico e o moderno.<br />
É impecável ainda na direção de arte e<br />
fotografia, e chegou a ser indicado a<br />
dois Oscar, o de Melhor Direção de<br />
Arte e Melhor Figurino.<br />
Orlando nos conduz a uma discussão<br />
pertinente que permeia arte, gênero,<br />
moda, sexualidade e corpo, e que nos<br />
leva a refletir quanto a moda e a subjetividade<br />
são indissociáveis, e comportam<br />
ambiguidades, paradoxalidades, ideologias<br />
e identidades múltiplas. Pensar a<br />
moda, neste contexto, é observar, analisar<br />
seus discursos, sua multiplicidade de cenários<br />
e de propostas, cada vez mais<br />
mutantes e feéricas, deixando de lado<br />
seu ar de frivolidade, tornando-se, um<br />
campo no qual as representações, os<br />
simbolismos, os questionamentos e os<br />
dilemas ganham dimensão. Afinal, a<br />
moda pensa além do feminino e do<br />
masculino.ø<br />
Márcia Mendonça é historiadora,<br />
professora e jornalista<br />
Revista Elas por Elas - Abril 2015