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Contornos do Indizível: o estilo de Clarice Lispector - Fale - UFMG

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Em Tese, Belo Horizonte, v. 10, p. 104-109, <strong>de</strong>z. 2006<br />

buscam uma saída para a própria sobrevivência, dramatizan<strong>do</strong> suas histórias.<br />

Personagens que assumem categorias sociais diversas em situações conflituosas<br />

iminentes: o pai que abusa da filha, a prostituta e o bandi<strong>do</strong>, a mãe e o filho<br />

<strong>de</strong>sapareci<strong>do</strong>, o psicótico e o travesti, rebeliões contra a polícia.<br />

Em 100 coisas, Bonassi apresenta um personagem subjetivo, que questiona sua<br />

própria existência. Porém, o sujeito retrata<strong>do</strong> é <strong>de</strong>scentra<strong>do</strong> <strong>de</strong> razão, psicologia e<br />

emoção. No lugar <strong>de</strong> tais aspectos, a ilógica e a ironia regem sua trajetória. Por isso,<br />

temos uma narrativa entrecortada por temas trágicos e, ao mesmo tempo, banais. São<br />

seres patéticos que zombam <strong>de</strong> um mun<strong>do</strong> <strong>de</strong>ca<strong>de</strong>nte: o tédio da sala <strong>de</strong> estar<br />

<strong>de</strong>fronte à televisão, o sufoco <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um ônibus lota<strong>do</strong> e o nervosismo <strong>de</strong> se pagar<br />

uma conta em uma fila <strong>de</strong> banco.<br />

Passaporte é a obra <strong>de</strong> Fernan<strong>do</strong> Bonassi em que percebemos o aban<strong>do</strong>no da<br />

história como fio condutor da narrativa; a presença da figura humana é <strong>de</strong>scartada em<br />

<strong>de</strong>trimento da potencialida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s espaços físicos. É evi<strong>de</strong>nte que tais espaços se<br />

referem aos seres que ali habitam, pois a partir da visualização <strong>do</strong>s lugares é possível<br />

se caracterizar <strong>de</strong>termina<strong>do</strong>s sujeitos. Confirmo a idéia <strong>de</strong> que o personagem não é um<br />

elemento central da narrativa, isto porque a própria noção <strong>de</strong> personagem se<br />

modificou. Passaporte possibilita ainda um importante diálogo com o teatro<br />

contemporâneo: visualizar as imagens contidas <strong>do</strong> texto como se fossem um<br />

espetáculo sonoro, verbal e plástico, e que não veiculam necessariamente uma história<br />

linear. São corpos humanos e inumanos lança<strong>do</strong>s em espaços múltiplos: cercas<br />

elétricas <strong>de</strong> uma cida<strong>de</strong> violenta, malas arremessadas em imensos porta-malas,<br />

bêba<strong>do</strong>s estira<strong>do</strong>s em meios-fios e chupetas esquecidas nos berços.<br />

Ao experimentar idéias e hipóteses, procuramos lançar um duplo olhar sobre a<br />

ficção <strong>de</strong> Fernan<strong>do</strong> Bonassi: vislumbrar encenações imaginárias no conto mínimo e<br />

fecundar a análise sobre a obra <strong>do</strong> autor. Aproximan<strong>do</strong>-nos <strong>do</strong> fim <strong>do</strong> nosso texto,<br />

narramos, finalmente, um que impulsionou a reflexão sobre cena e conto, e que está<br />

presente em 100 histórias colhidas na rua.<br />

108<br />

No centro <strong>do</strong> vale — para além <strong>do</strong>s fios <strong>de</strong> luz da estrada e da pare<strong>de</strong> <strong>de</strong> montanhas —,<br />

on<strong>de</strong> o véu <strong>de</strong> chuva e neblina une o céu à terra, um homem transformou a vagina <strong>de</strong> sua<br />

mulher numa máscara e a está sugan<strong>do</strong>. Essa mulher mergulhada, giran<strong>do</strong> no eixo da<br />

coluna, masca o lábio superior. Nenhuma palavra. (BONASSI, 1996, conto 28, p. 63)<br />

Como uma rubrica poética, repleta <strong>de</strong> imagens e percepções, <strong>do</strong>is seres se amam<br />

em um lugar longínquo, incógnito — no “centro <strong>do</strong> vale”. Um ato emoldura<strong>do</strong> pelo<br />

olhar fortuito <strong>do</strong> narra<strong>do</strong>r: o mergulho <strong>de</strong> uma mulher apreendi<strong>do</strong> no momento exato<br />

em que o leitor visualiza a ação. A cena fugaz e instantânea nos mostra que o conto<br />

mínimo ultrapassa a dureza <strong>do</strong> cotidiano e transborda a beleza e o inesgotável da vida.<br />

O sublime das coisas ínfimas e minúsculas. O êxtase da contemplação. O silêncio da<br />

cena. E o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> não se dizer mais nada, quan<strong>do</strong> a imagem sufoca as explicações<br />

<strong>de</strong>snecessárias.<br />

Neste breve momento, é possível se captar um efeito teatral, que incita os<br />

senti<strong>do</strong>s <strong>do</strong> receptor para além <strong>do</strong> transitório <strong>do</strong>s acontecimentos. Dizemos que,<br />

para<strong>do</strong>xalmente, o teatro imprime sua permanência justamente a partir <strong>do</strong> efêmero <strong>de</strong><br />

sua condição. O teatro é um exercício estético <strong>do</strong> inacaba<strong>do</strong>, um processo em<br />

permanente construção, que preten<strong>de</strong> apresentar mun<strong>do</strong>s e sujeitos que também se<br />

transformam a to<strong>do</strong> instante. Inacaba<strong>do</strong>s, cena e conto são partes mínimas <strong>de</strong><br />

histórias mais amplas e, ao mesmo tempo, plenas <strong>de</strong> senti<strong>do</strong>.<br />

Acreditamos assim que toda cena, to<strong>do</strong> conto é um gran<strong>de</strong> improviso. Almejan<strong>do</strong><br />

um caráter instantâneo, o conto mínimo aproxima-se <strong>do</strong> teatro, mesmo saben<strong>do</strong> que<br />

Disponível em http://www.letras.ufmg.br/poslit

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