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Contornos do Indizível: o estilo de Clarice Lispector - Fale - UFMG

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Em Tese, Belo Horizonte, v. 10, p. 67-73, <strong>de</strong>z. 2006<br />

No seu relato, Jesus expõe suas emoções diante <strong>do</strong>s fatos, preocupação que os<br />

evangelistas não tiveram, porque ainda que o personagem <strong>do</strong> romance, algumas<br />

vezes, pedisse aos apóstolos e às pessoas que curava que não falassem a respeito <strong>de</strong>le<br />

e <strong>de</strong> quem era, e ainda que se mantivesse reticente sobre isso, a convicção <strong>de</strong> seu<br />

messianismo existia <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início. Nos Evangelhos, os motivos pelos quais Jesus não<br />

anunciava abertamente e <strong>de</strong> imediato sua condição <strong>de</strong> Messias seriam estratégicos, e<br />

não <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> a incertezas pessoais. No entanto, essa “vacilação discernível” (STRAUSS,<br />

1994, p. 284) quanto à i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Jesus nos sinópticos abre uma lacuna na<br />

interpretação <strong>do</strong> texto bíblico, e é <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>ste espaço que Mailer procura evi<strong>de</strong>nciar a<br />

humanida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Jesus.<br />

Uma característica marcante <strong>do</strong> Jesus <strong>de</strong> Mailer é sua aguda percepção olfativa.<br />

Do aroma da ma<strong>de</strong>ira com que trabalha em seus dias <strong>de</strong> carpinteiro ao o<strong>do</strong>r <strong>do</strong>s pés<br />

<strong>do</strong>s apóstolos que ele lava, após a ceia final, o cheiro das coisas possui um papel<br />

significativo no relato <strong>de</strong> Jesus. O hálito <strong>de</strong> João Batista, quan<strong>do</strong> o batiza, é<br />

“impregna<strong>do</strong> <strong>de</strong> tu<strong>do</strong> o que exala um homem <strong>de</strong>paupera<strong>do</strong>” e sua pele dissemina “o<br />

mesmo o<strong>do</strong>r <strong>do</strong> Jordão” (ESF, p. 35). O corpo <strong>do</strong> diabo exala “um o<strong>do</strong>r pareci<strong>do</strong> ao que<br />

vive entre as ná<strong>de</strong>gas” e, ao ser tenta<strong>do</strong> por ele, o cheiro da comida que o diabo lhe<br />

oferece excita seu apetite (ESF, p. 42). Ao se referir aos escribas <strong>do</strong> templo, ressalta<br />

que “o o<strong>do</strong>r da sua santida<strong>de</strong> sabia a moluscos mortos” (ESF, p. 71) e, quan<strong>do</strong><br />

ressuscita Lázaro, sente-se prepara<strong>do</strong> “para sentir o o<strong>do</strong>r da morte” (ESF, p. 125).<br />

Quan<strong>do</strong> Jesus é ungi<strong>do</strong> com óleo <strong>de</strong> nar<strong>do</strong> pela mulher i<strong>de</strong>ntificada como Maria, a casa<br />

on<strong>de</strong> se encontra fica “completamente tomada pelo perfume”, que “fora um bálsamo<br />

para a solidão que rugia no [...] [seu] ventre” (ESF, p. 166). O perfume traz à<br />

memória versos <strong>do</strong> Cântico <strong>do</strong>s Cânticos e traduz “um instante <strong>de</strong> felicida<strong>de</strong>” (ESF, p.<br />

166). Os pés <strong>do</strong>s apóstolos, uns limpos, outros cheiran<strong>do</strong> mal, evi<strong>de</strong>nciam a<br />

diversida<strong>de</strong> entre eles: “alguns tinham as pernas rijas, mas outros logo estariam<br />

prontos para fugir” (ESF, p. 172). Entre a gama <strong>de</strong> emoções e sentimentos que Jesus<br />

<strong>de</strong>screve, <strong>de</strong>stacar a atuação <strong>de</strong> um senti<strong>do</strong> — o olfato — mostra-se uma maneira<br />

singular <strong>de</strong> apreen<strong>de</strong>r as coisas. Aplicada a Jesus, na sua biografia, ressalta ainda mais<br />

sua humanida<strong>de</strong>, em um contexto puramente biológico. Os senti<strong>do</strong>s não <strong>de</strong>ixam <strong>de</strong> ser<br />

importantes para Jesus. Afinal, ele faz os cegos verem, os mu<strong>do</strong>s falarem, os sur<strong>do</strong>s<br />

ouvirem, os leprosos sentirem. Os cheiros <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, ele os capta e os traduz.<br />

Nos Evangelhos, os sofrimentos físicos <strong>de</strong> Jesus assumem uma dimensão maior<br />

<strong>de</strong>pois <strong>de</strong> sua prisão, quan<strong>do</strong> é maltrata<strong>do</strong> pelos sacer<strong>do</strong>tes <strong>do</strong> templo e pela guarda<br />

romana. Antes da prisão temos, nos Evangelhos sinópticos, a cena da angústia<br />

suprema <strong>de</strong> Jesus no Getsêmani, on<strong>de</strong> chega a porejar sangue, na versão <strong>de</strong> Lucas.<br />

Mas em nenhum <strong>de</strong>sses relatos o sofrimento <strong>de</strong> Jesus é <strong>de</strong>scrito em <strong>de</strong>talhes. Ele é<br />

açoita<strong>do</strong>, cuspi<strong>do</strong>, crucifica<strong>do</strong>, mas não sabemos como se sentiu. Em O Evangelho<br />

segun<strong>do</strong> o Filho, Jesus fala com freqüência <strong>de</strong> suas <strong>do</strong>res, suas febres, sua insônia.<br />

Esta última ou o atormentava, ou o <strong>de</strong>ixava exauri<strong>do</strong>. A consciência da <strong>do</strong>r acentua-se<br />

na crucificação, quan<strong>do</strong> Jesus diz que sua “alma iluminou-se <strong>de</strong> <strong>do</strong>r” e “[q]uan<strong>do</strong><br />

levantaram a cruz <strong>do</strong> chão foi como se [ele] subisse mais alto e com mais <strong>do</strong>r ainda.<br />

Um sofrimento tão vasto quanto os mares” (ESF, p. 195), que aniquila seu corpo e, em<br />

alguns momentos, <strong>de</strong>sestabiliza sua fé.<br />

O Jesus homem termina sua jornada imerso em <strong>do</strong>r, mas também em esperança.<br />

Reconcilia-se, enfim, com sua própria divinda<strong>de</strong>. É o que se po<strong>de</strong> concluir da versão <strong>de</strong><br />

Jesus proposta por Mailer, em O Evangelho segun<strong>do</strong> o Filho: a exposição <strong>de</strong> sua<br />

humanida<strong>de</strong> não submerge sua consciência <strong>de</strong> ser também divino. Mailer, apesar da<br />

ênfase no Jesus homem, não <strong>de</strong>scartou o Jesus divino, principalmente porque opta por<br />

Disponível em http://www.letras.ufmg.br/poslit<br />

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