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Contornos do Indizível: o estilo de Clarice Lispector - Fale - UFMG

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Em Tese, Belo Horizonte, v. 10, p. 10-15, <strong>de</strong>z. 2006<br />

história <strong>de</strong> si mesmo sempre alheia ao tempo socialmente imposto ao homem: não se<br />

casou quan<strong>do</strong> <strong>de</strong>veria, então, nunca se casou; não conseguiu o cargo profissional<br />

almeja<strong>do</strong> quan<strong>do</strong> era tempo, então, nunca trabalhou; em suma, a quebra no “tempo<br />

convencional” ocasionou-lhe uma vida estéril, como se fora uma punição por não se ter<br />

manti<strong>do</strong> <strong>de</strong>ntro <strong>do</strong>s padrões.<br />

Mesmo ten<strong>do</strong>-se utiliza<strong>do</strong> da morte para permanecer vivo, para conseguir aquilo<br />

que, em vida, falhou — a imortalida<strong>de</strong> —, Brás constrói sua narrativa <strong>de</strong> forma a<br />

manter o leitor atento até o fim <strong>do</strong> livro. Se sua vida carece <strong>de</strong> emoção, o narra<strong>do</strong>r<br />

busca manter o leitor pelos recursos temporais que insere em seu texto. Brás tem<br />

consciência <strong>de</strong> que sua “imortalida<strong>de</strong>” está ligada ao tempo narra<strong>do</strong>, ao espaço<br />

limita<strong>do</strong> <strong>do</strong> livro e ao tempo <strong>de</strong> leitura. Para prolongar sua existência, Brás, então,<br />

fun<strong>de</strong> sua história à narrativa, priorizan<strong>do</strong> o discurso, a linguagem, preterin<strong>do</strong> os fatos<br />

em função <strong>do</strong> processo da escritura.<br />

A segunda abordagem que fazemos é <strong>do</strong> tempo como transforma<strong>do</strong>r da<br />

i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Brás Cubas, que apresenta alterações tanto como personagem quanto<br />

como narra<strong>do</strong>r. Vimos, com Meyerhoff, que o tempo é um aspecto intrinsecamente<br />

liga<strong>do</strong> ao conceito <strong>do</strong> eu (MEYERHOFF, 1976, p. 1-2). O tempo irregular, interrompi<strong>do</strong><br />

e saltitante que se apresenta em Memórias póstumas <strong>de</strong> Brás Cubas correspon<strong>de</strong> ao<br />

sujeito <strong>de</strong> Brás, também irregular, interrompi<strong>do</strong> e saltitante. Essas características<br />

legaram a Brás Cubas o adjetivo “volúvel”, sofren<strong>do</strong> o narra<strong>do</strong>r, segun<strong>do</strong> Schwarz, <strong>de</strong><br />

uma constante “<strong>de</strong>si<strong>de</strong>ntificação” <strong>de</strong> si mesmo (SCHWARZ, 1990, p. 29-33).<br />

Qualquer narrativa em primeira pessoa apresenta uma diferenciação, por mais<br />

sutil que seja, entre o “eu narra<strong>do</strong>” e o “eu narrante” (termos <strong>de</strong> Stanzel) (SCHWARZ,<br />

1990, p. 29-33). Há, necessariamente, um espaço <strong>de</strong> tempo entre o fato ocorri<strong>do</strong> e o<br />

momento <strong>de</strong> narrá-lo, o que po<strong>de</strong> gerar mudanças nesse sujeito “personagem” para o<br />

sujeito “narra<strong>do</strong>r”. Em Memórias póstumas <strong>de</strong> Brás Cubas, porém, a diferença <strong>de</strong><br />

tempo entre o “eu narra<strong>do</strong>” e o “eu narrante” é in<strong>de</strong>finida, pois há a morte e o tempo<br />

da <strong>de</strong>composição <strong>do</strong> corpo antes <strong>de</strong> se iniciar a narrativa — como vimos, as memórias<br />

são <strong>de</strong>dicadas ao verme que lhe roeu as carnes.<br />

Essa distância temporal dificulta a i<strong>de</strong>ntificação <strong>do</strong> leitor vivo com o <strong>de</strong>funto<br />

autor, necessitan<strong>do</strong> Brás <strong>de</strong> um novo leitor, capaz <strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r não só o processo<br />

artificial da escrita, como os comentários e reflexões <strong>de</strong> um morto, fugin<strong>do</strong>, assim, <strong>de</strong><br />

esperar no enre<strong>do</strong> ou na verossimilhança o fio condutor <strong>do</strong> romance.<br />

A forma em que Brás Cubas se apresenta ao leitor — morto — <strong>de</strong>ixa à mostra a<br />

consciência <strong>do</strong> <strong>de</strong>funto autor tanto em relação à própria ficcionalida<strong>de</strong> quanto à própria<br />

existência limitada durante a leitura, revelan<strong>do</strong> a construção explicitamente artificial <strong>de</strong><br />

Macha<strong>do</strong> <strong>de</strong> Assis. As memórias que compõem a narrativa, então, apresentam-se<br />

também tão artificiais quanto o próprio narra<strong>do</strong>r-personagem. Deleuze sugere que só o<br />

presente exista, sen<strong>do</strong> o passa<strong>do</strong> e o futuro redimensiona<strong>do</strong>s na flecha <strong>do</strong> tempo. A<br />

memória, como passa<strong>do</strong> que se revitaliza no presente, só existe, no livro, no momento<br />

da leitura.<br />

A permanente in<strong>de</strong>cidibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Brás Cubas se compara à <strong>de</strong>finição <strong>de</strong> beleza<br />

artística proposta por Bau<strong>de</strong>laire. O poeta e crítico francês <strong>de</strong>svia o conceito <strong>do</strong>s<br />

padrões clássicos <strong>de</strong> beleza ao inserir-lhe a dupla dimensão da convivência entre o<br />

eterno e o provisório. O <strong>de</strong>funto autor, como vimos, apesar <strong>de</strong> ter consegui<strong>do</strong> a<br />

imortalida<strong>de</strong>, ainda assim se mantém em constante oscilação, abraçan<strong>do</strong> na ficção o<br />

que Bau<strong>de</strong>laire teoricamente postulava.<br />

Vale observar que as freqüentes <strong>de</strong>si<strong>de</strong>ntificações <strong>de</strong> Brás Cubas se associam<br />

imediatamente, segun<strong>do</strong> Schwarz, a fatos históricos nacionais, visto ser a história <strong>do</strong><br />

12<br />

Disponível em http://www.letras.ufmg.br/poslit

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